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Flash de um solo fora da escola

A manifestação que em 1994 reuniu 1500 estudantes nas escadarias da Assembléia Estadual do Estado do Rio de Janeiro serve de pretexto para a análise das redes de conhecimento construídas fora do espaço escolar.

Quando passamos a estudar o cotidiano escolar a partir da noção de conhecimento em rede e a idéia de tessitura dos conhecimentos em redes, entendendo que esta é uma metáfora de criação do conhecimento nos diferentes contextos cotidianos aos quais estamos mergulhados, podemos perceber algumas ações do processo desencadeado no interior e fora de cada escola a partir de práticas coletivas nas quais vão sendo superados os discursos naturalizados e que podem tecer identidades solidárias, levando a outras ações que ultrapassam os muros quase inexpugnáveis da instituição.
Boaventura de Sousa Santos coloca que identidades solidárias são aquelas cujo conhecimento é obtido em processo, sempre inacabado, e que nos tornar capazes de agir com o outro com reciprocidade, através da construção e do reconhecimento da intersubjetividade (2000).
Nas imagens de jornais de 1994, no estado do Rio de Janeiro sobre o Ato Público do Movimento Estadual do Passe Livre que reuniu mais de 1500 estudantes de várias partes do estado do Rio de Janeiro, nas escadarias da ALERJ (Assembléia Estadual do Estado do Rio de Janeiro), me ajudam a entender que o aprender/ensinar não se dão somente no espaço da escola e que a tessitura da solidariedade se dá no próprio exercício de ações solidárias quando sentimos o cheiro, tocamos, percebemos e nos deixamos perceber pelos objetos e pessoas que nos cercam. Eis a primeira imagem:

Nota do webmaster: Na edição online não são reproduzidas as imagens da edição em papel.

A foto 1 apresenta os jovens, alunas e alunos, pelas escadarias da Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro em Ato Público organizado pelo Movimento por Passe Livre de estudantes em ônibus, barcas, trem e metrô, incluído na Constituição Estadual. Nela está registrado, e pode ser lido por quem viveu aquele momento, muito mais do que um número grande de jovens lutando por um dos direitos constitucionais, para a garantia de escolaridade e mesmo mais do que uma luta cidadã. Lá estão, gravados na memória de seus participantes: os sorrisos, as brincadeiras, o cochicho das "paqueras", a partilha dos biscoitos levados, a exibição dos corpos adolescentes, o espanto e admiração com um lugar que ainda não haviam visitado, o incômodo do sol quente, a busca pela sombra para dele fugir, a falta de lugar confortável para sentar, o cansaço, os grupos se organizando, os sons e os cheiros da poluição do centro do Rio... Apresenta, assim, os inúmeros significados desse momento, no qual alunas e alunos, professoras e professores aprenderam juntos que as lutas por cidadania nem sempre se dão de maneira tranqüila. No entanto, as redes de saberes tecidas nesse momento podem apresentar lições solidárias que antes não foram escritas em nenhum livro ou mesmo oportunizadas em nenhuma sala de aula. Sendo assim, se nos detivermos um pouco mais na imagem da foto 1, vamos poder observar aqueles que estão isolados em um momento coletivo. Podemos observar no alto das estátuas os que buscam o "ver" do alto ou simplesmente enfrentar o desafio de sentar-se em lugar perigoso (tão próprio da idade!). Tudo isto me faz pensar no quanto estão aprendendo/ensinando nesse momento. Que redes de conhecimento são então conectadas?

A foto 2 apresenta uma situação bem diferente da anterior, embora esteja registrando o mesmo espaço/tempo. Esta fotografia mostra uma aluna com o adesivo distribuído e colocado no rosto, que para mim, é como se estivesse tapando/selando sua boca. No entanto, permito-me dizer que essa aluna parece silenciar o que já se encontra silenciado: a voz de quem deseja ter a dignidade de poder estudar apesar de morar longe de sua escola, em um protesto silencioso contra a violência cometida pelos donos de empresas de ônibus. Esta foto pode estar significando a situação humilhante a que esses alunos estão submetidos ao tentar entrar nos ônibus sem precisar pagar suas passagens. Ela também pode significar a possibilidade de inventar modos e maneiras de protestar pelos seus direitos. Ainda na mesma foto, outra aluna com seu rosto pintado com as iniciais "P" "L", (de Passe Livre) faz do seu próprio corpo o espaço da rebeldia através da escrita que aprendeu na escola. Outro aluno, com uma bandeirinha por eles confeccionada, esconde o seu rosto. Por quê? Será que, entre outras lições, ele já aprendeu que o anonimato talvez seja bom, pois o medo que acompanha essas ações já foi também aprendido? Medo de quê? De se expor devido as formas de poder a que são submetidos os mais fracos e que pode tomar uma forma violenta que ele tão bem conhece, pois a viu tantas vezes exercida? Ou medo de que alguém da família possa perceber sua figura, já que pode ter comparecido sem permissão a um ato público como este?
Todas estas observações indicam que práticas realizadas em diferentes contextos se fazem presentes em nossas vidas e vão sinalizando que fora do espaço/tempo escolar também se aprende/ensina. O que significa que quando pensamos na prática de alternativas curriculares a partir de um olhar para o cotidiano é necessário buscar compreender e incorporar as tantas outras redes que criam e desenvolvem tudo o que alunos/alunas, tanto quanto professores/professoras realizam fora do solo da escola.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 114
Ano 11, Julho 2002

Autoria:

Solange Castellano Fernandes Monteiro
Univ. do Estado do Rio de Janeiro, UERJ, Brasil
Solange Castellano Fernandes Monteiro
Univ. do Estado do Rio de Janeiro, UERJ, Brasil

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