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A escola de inspiração militar, prisional e religiosa já não dá frutos

No final do mês de Junho foram divulgadas as avaliações feitas a cerca de meio milhar de escolas. Com a sofreguidão esperada alguns órgãos de comunicação social organizaram o ranking "das melhores" e "das piores". Comparam alhos com bugalhos. Pensam que a solução dos problemas da escola passa pela sua avaliação, classificação e gratificação ou penalização dos seus agentes. Não é assim.
O fracasso das políticas educativas tem resultado da incapacidade de realizar a passagem da velha escola selectiva - de elites - para a escola de massas - democrática.

A escola que temos foi inventada no século XIX para servir a nascente sociedade industrial e o Estado-Nação. A sociedade industrial foi superada. A uma nova sociedade é natural que suceda um novo sistema educativo. Na esteira de Ivan Illich podíamos até admitir que o sistema educativo desaparecesse por já não ter sentido. Mas não parece ser esta a realidade. Os sistemas educativos tradicionais faliram e não se mostram reformáveis. Mas é preciso inventar outros que tenham em conta os novos contextos e necessidades.
Os velhos sistemas educativos repousaram sempre em três pilares: o militar, o religioso e o optimismo escolar.

1. Da estrutura militar à organização prisional. Do ponto de vista organizacional o velho sistema escolar inspirou-se nos exércitos clássicos europeus do século XIX. Estes organizaram-se em regimentos que se dividiram em companhias e estas em pelotões de trinta a trinta e seis soldados.
Comandava o regimento um oficial superior coadjuvado por um estado maior. As companhias obedeciam a oficiais intermédios e os pelotões a oficiais de baixa patente. Cada pelotão dividia-se em grupos de cinco ou seis soldados hierarquizados por antiguidade. Mais coisa menos coisa parece que ainda é assim.
Os sistemas educativos nacionais (ou exércitos?) organizaram-se em escolas (ou quartéis?). Os alunos organizavam-se em níveis (ou companhias?). Estes dividiam-se em turmas (ou pelotões?) de trinta a trinta e seis almas. As turmas podiam ser organizadas em grupos de cinco ou seis alunos (ou soldados?).
Era tradição que as escolas fossem dirigidas por um director/reitor (oficial superior?) o qual era coadjuvado por um conselho pedagógico (ou estado-maior?). Existiam professores-coordenadores ( ou oficiais intermédios?) de nível de ensino. As turmas obedeciam a vulgares professores (sargentos ou oficiais de baixa patente?) e os grupos a um aluno (soldado?) mais esperto ou mais querido do professor. Mais coisa menos coisa parece que ainda é assim.
As semelhanças entre os dois modelos permaneceram ao longo do tempo pesem as mudanças ocorridas no interior de cada um dos sistemas. A economia deste texto não me permite ilustrar o paralelo entre espaço militar e espaço escolar. Para lá das semelhanças no interior dos edifícios lá estão, no exterior, a parada do quartel e o pátio escolar.
Quartéis e escolas continuam a ser espaços concentracionários. Espaços a pensar na disciplina, no adestramento, numa certa forma de formar pessoas para os combates, sejam eles militares ou económicos.
Nos últimos anos a indisciplina nas escolas levou a que se olhasse cada vez mais para as prisões como fonte alternativa de inspiração quer para a organização do espaço quer para a gestão dos alunos.
As escolas são cada vez mais uma síntese entre o modelo militar e o modelo prisional. Muros, cercas, controle à entrada, câmaras de televisão, vigilância, revista das pessoas, guardas, guardas-auxiliares de educação nos recreios, policiamento... são elementos partilhados por quartéis, prisões e escolas.
Não é por acaso que nos países onde a indisciplina e a violência escolares vai mais adiantada- como ocorre nos EUA - muitas escolas já são dirigidas por coronéis e generais na reserva ou por experientes ex-directores de estabelecimentos prisionais.
A velha escola caminha para se tornar num moderno estabelecimento prisional. As crianças e os jovens estão condenados a frequentá-lo num tempo longo e intenso. Os professores-guardas-prisionais trabalham lá para sobreviver.
Cada professor deve decidir se apoia a velha escola ou se é a favor da reinvenção dos sistemas educativos. Apoiar significa aceitar acriticamente a burocracia instalada e gastar a vida a discutir indisciplina, segurança, avaliação, classificação, atribuição de castigos, violência, gestão, modernização da repressão... Um olho a procurar os culpados pela falência galopante do sistema o outro a procurar a reforma que só vem no fim da vida.

2 . Da celebração religiosa ao acto pedagógico tradicional. Nos últimos cento e cinquenta anos pouco mudou nas práticas de ensino. Permanece o essencial.
O exército organizou-se para a guerra clássica, mas com o tempo alterou muitas práticas - modernizou-se - em função dos novos desafios e dos novos equipamentos disponíveis.
A escola teve os seus percursos de modernização ainda que de forma mais discreta. Não viu inventar o seu helicóptero, o seu porta-aviões, os seus bombardeiros e submarinos, as suas metralhadoras, os seus mísseis. Por isso mantém o tradicional quadro preto, o velhinho pau de giz, o eterno manual escolar. Mesmo a recente introdução do vídeo e do computador não tiveram sobre as escolas o impacto que teve no exército a espingarda automática, a metralhadora ou o helicóptero.
Continuamos próximos das práticas pedagógicas primitivas. Práticas inspiradas em rituais religiosos. Basta um olhar para a sala de aula. O professor-oficiante e os fieis-alunos. O altar-secretária do professor, a bíblia-manual-escolar onde se encontra a verdade pela qual se premiarão ou condenarão os fieis.
Na sala de aula celebra-se a missa. A igreja contenta-se com uma celebração de vez em quando. Na escola celembram-se missas de forma compulsiva. Não admira que os celebrantes desesperem e adoeçam e os fieis abandonem ou percam de todo a fé, o prazer, o interesse, a esperança.
A escola tradicional é feita de rituais. Às igrejas vai quem quer. À escola, crentes ou não crentes, vão todos por obrigação. Querer ensinar matemática a um não crente é uma tonteria. Mas a escola tradicional persiste agarrada às suas velhas crenças, programas, rituais e crendices.
Uma outra escola, uma outra forma de ensinar e aprender, precisa-se. Reinvente-se.

3 - Do optimismo ao pessimismo escolar. Os criadores da escola tradicional acreditavam nela. Possuíam um verdadeiro optimismo escolar. Estavam convencidos que o exército escolar venceria a batalha da ignorância e imporia o domínio do saber.
Os objectivos eram claros. Parafraseando o meu velho professor da primária a escola servia para joeirar a canalha que lá entrava. Ao professor competia agrupar os alunos em "ases, trapalhões e burros". Os ases estavam destinados a voar alto. Os trapalhões, joeirados na fase seguinte, alguns podiam vir a voar raso. Os burros "elas que se agarrem à máquina de costura e eles ao rabo do arado que é esse o seu destino na vida".
O optimismo escolar manteve-se enquanto na escola só entravam alguns e dos que lá entravam, depois de devidamente joeirados, se aproveitava apenas um punhado deles. Os que de lá saiam saiam bem ensinados. Aquela era a escola que ensinava bem. A escola que mantinha o optimismo escolar.
Coisa diferente é esta escola de agora, sem eira nem beira, que não é carne nem peixe. Escola para todos mas que mantém a estrutura tradicional. É como pedir a um exército clássico que ganhe uma guerra de guerrilha. Não ganha. Perde.
O optimismo escolar, esse terceiro pilar que sustentou durante anos o sistema educativo, foi substituído nas últimas décadas por um profundo pessimismo escolar.

4 - Uma outra escola é preciso. Também hoje se exigem objectivos claros. A sociedade do conhecimento não forma para diferentes patamares profissionais e sociais. A outra escola é aquela que se centra sobre as pessoas. Que cada um, ao longo da vida, aprenda o maior número de conhecimentos possível. Que cada um seja um utilizador-produtor de conhecimento. Que cada um saiba lidar criticamente com o saber que o cerca. A outra escola não toma como objectivo separar o "trigo do joio". Não segrega, não marginaliza, integra. Não se assume como um exército formador de oficiais, sargentos e soldados para o mercado de trabalho. Forma cidadãos. Exercita e aprofunda a cidadania.
A outra escola, a escola reinventada já não se inspira na estrutura militar, prisional ou religiosa. Não é regimento nem igreja. Dispensa crenças e rituais. Desenvolve outras dimensões. Integra-se bem na paisagem social cuja renovação aponta e exige. Não tem turmas. Dispensa comandantes e comandados. Respeita o saber. Produz e partilha saberes. Solidária, é um pequeno colectivo de aprendizes e a sua dimensão não dá azo ao anonimato. Recusa viver num deserto social. Participa e insere-se numa comunidade saudável, alegre e solidária.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 114
Ano 11, Julho 2002

Autoria:

José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.
José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.

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