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Liberal, neiliberal, antiliberal

Como observou o fundador da Semiótica moderna, "os homens e as palavras educam-se mútuamente: todo o aumento de informação do homem é ao mesmo tempo o aumento de informação de uma palavra e vice versa" (C.S. Peirce, "Consciência e Linguagem", 1867).

A memória das palavras

Quanto mais é que significa hoje (perguntava C.S. Peirce) a palavra "electricidade" do que no tempo de Franklin ? Quanto mais é que significa hoje a palavra "planeta" do que no tempo de Hiparco ? Essas palavras, é óbvio, adquiriram informação (sem obliterar o seu significado básico), tal como o faz o pensamento de uma pessoa através de uma percepção ulterior, por exemplo, da cara da sua nova vizinha.
Falta apenas acrescentar que o mesmo se aplica à eliminação da informação de uma palavra já com provas dadas da sua diferença específica em relação a todas as outras. Só que, nesses casos, as pessoas e as palavras deseducam-se umas às outras, empobrecendo-se mútuamente. Quando assim acontece, as palavras ofendidas poderiam replicar dizendo: "você não sabe do que fala, porque se esqueceu daquilo que lhe ensinámos a dizer para clarificar e afinar o seu pensamento. Fez de nós uma espécie de "objectos faladores não identificados" (OFNIs), o que é grave. Admire-se, pois, que o venham a criticar de modo ríspido".
Pedir-me-ão PROVAS disto. Creio que já as dei aqui mesmo, em ocasiões anteriores. Mas eis mais alguns exemplos a juntar ao rol.

Liberal

Consideremos a palavra "liberal". Por cá, parece ter-se esvaído da memória colectiva, a das palavras de uso corrente, o significado que tinha para homens como, por exemplo, Manuel Fernandes Tomás, Mouzinho da Silveira, Garret ou Herculano: mais liberdade em todas as esferas (incluindo a política e a económica) de actividade humana. Mas nos países de língua inglesa esse significado primordial ainda continua vivo na própria gíria política, onde se opôe a "conservador". No fundo, nada de muito diferente do modo como "progressista" era empregue em Portugal, durante o "Estado Novo", quando se opunha a "reaccionário". Bastava, então, ser contra a "situação" para enfileirar nas hostes "progressistas", onde cohabitavam monárquicos e republicanos, católicos e protestantes, maçónicos e ateus, anarquistas e estatistas, socialistas e comunistas. Depois da revolução de 1974, a oposição "progressista/reaccionário" perdeu o seu poder discriminante e ambas as palavras foram caindo em desuso.
A política, porém, precisa, tanto em ditadura como em democracia, de palavras que marquem a tensão permanente (quando não o conflito aberto) entre os diferentes grupos que disputam o controlo do Estado. E temos hoje, para servir esse desiderato, entre outras, a velha oposição francesa "esquerda/direita", que não é muito diferente, aliás, em poder discriminante, da que opõe ainda hoje na Grã-Bretanha "liberais" a "conservadores" (apesar do Partido Trabalhista ter surgido há quase um século), ou, nos EUA, "democratas" a "republicanos".

Acusações disparatadas

Assim, se alguém chamasse "(neo)liberal" ao actual presidente dos EUA ou à sra. Tatcher, ex-chefe de governo no Reino Unido, eles sentir-se-iam insultados, com razão. E se as mesmas palavras fossem empregues para qualificar as suas políticas, eles sentiriam, com igual razão, que os difamavam perante o seu eleitorado. Compreende-se que assim seja: são ANTILIBERAIS convictos e assumidos.
Mas isso não impede que estes políticos (e outros da mesma ideologia) sejam apontados a dedo como os expoentes máximos das "políticas económicas ultraliberais" (!) ou da "globalização capitalista neoliberal" (!). É essa a acusação que lhes dirige o movimento político conhecido por Forum Social Mundial, que conta com simpatizantes proeminentes no nosso país. Como explicar tamanho disparate ? Haverá mais do que uma explicação. Mas o princípio da parcimónia impõe que se dê primazia à pura ignorância do que "globalização" e "liberalismo" significam.

Ignorância arrebicada

Há, porém, quem assevere que "globalização neoliberal" resume bem uma rigorosa análise marxista (para alguns sinónimo de "científica") da política do capital financeiro à escala mundial. Lê-se e pasma-se. Mesmo pondo de lado a questão das pretensões científicas do marxismo (que não pode ser aqui tratada), o argumento só patenteia ignorância crassa da própria teoria que invoca. Chamo a depor o marxista austríaco Rudolf Hilferding, economista de renome, que escreveu no seu tratado sobre "O Capital Financeiro" (1910):
"A política do capital financeiro é totalmente oposta à do liberalismo; o capital financeiro não deseja liberdade mas domínio, não tem o gosto da independência do capitalista individual, mas pede a sua arregimentação, detesta a anarquia da concorrência e deseja organização, apenas para reiniciar a concorrência a um nível mais alto. Para isso, (...) necessita da garantia do Estado na protecção do mercado interno, e, portanto, de facilidades para a conquista dos mercados externos. Exige um Estado políticamente forte, que não leve em conta os interesses de outros Estados na formulação da sua política comercial. (...) Onde o liberalismo é contra a política do poderio estatal e deseja assegurar o seu domínio contra o poder antigo da aristocracia e da burocracia, pelo que limitava os instrumentos de poder estatal ao mínimo possível, o capital financeiro pede um poder político sem limites, mesmo que os gastos com o exército e a marinha de guerra [a aviação militar mal despontava] não assegurem directamente aos grupos capitalistas mais poderosos um mercado importante com enormes lucros monopolistas (...) Desse modo, a ideologia do imperialismo surge no túmulo dos velhos ideais liberais. Zomba da ingenuidade do liberalismo."


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 113
Ano 11, Junho 2002

Autoria:

José Manuel Catarino Soares
Instituto Politécnico de Setúbal
José Manuel Catarino Soares
Instituto Politécnico de Setúbal

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