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Reclusos: mudar representações e rotinas instituídas


"Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei"
Art.º 13.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa

São conhecidos e identificados sinais de preconceito e de discriminação em certos grupos a nível individual, social e cultural. Um dos grupos mais marcados pelo sentimento de "indesejabilidade", devido à sua própria situação particular, é a população reclusa.

As relações dos cidadãos com os reclusos pautam-se, a maioria da vezes, por distantes, marcadas por estereótipos, frequentemente negativos, apoiados em ditados populares do tipo "erva daninha não a queima a geada" ou "quem nasce torto tarde ou nunca se endireita" que contribuem para as representações que a sociedade tem dos reclusos, que se deve, em nosso entender, à ignorância do meio prisional, que transforma reclusos em bodes expiatórios, que discrimina e exclui toda esta população da possibilidade de prover às suas necessidades fundamentais, nomeadamente o direito ao trabalho e à participação plena na vida social. Este "modelo" de sociedade que deprecia, rebaixa e desumaniza grupos, mas que muito fala em tolerância, lá diz o ditado de "Boas intenções está o inferno cheio" devia, antes de mais, ter consciência de aprender a intervir e trabalhar com gente que vive fechada, em espaços exíguos, à margem da sociedade.
Nesta perspectiva, pensamos que importa mudar representações e rotinas instituídas em relação ao meio prisional, que passa a nosso ver por uma mudança estrutural de sentimentos e de sensibilidades, a partir do qual surgirá o bom senso para conduzir a nossa actuação a todos os níveis.
Nesta óptica, impõe-se uma política de reinserção social que privilegie o recluso, assumindo um conjunto de solicitações, nomeadamente de carácter educativo e profissional como resposta aos baixos níveis educacionais existentes, numa dupla perspectiva - valorização pessoal e profissional, em vista à sua progressiva participação social e política.
Neste contexto, defendemos uma política para o sistema prisional assente na valorização do recluso e dos seus saberes que permitam reencontrar espaços de interacção entre as dimensões pessoais e profissionais, que lhes dê um sentido de vida, que vá de encontro ao proclamado pela Assembleia Geral das Nações Unidas (68.ª sessão plenária, 14 de Dezembro de 1990) relativo a alguns dos princípios básicos relativos ao tratamento de reclusos, nomeadamente:

  1. A responsabilidade das prisões pela guarda dos reclusos e pela protecção da sociedade contra a criminalidade, deve ser cumprida em conformidade com os demais objectivos sociais do Estado e com a sua responsabilidade fundamental de promoção do bem-estar e do desenvolvimento de todos os membros da sociedade;
  2. Excepto no que se refere às limitações evidentemente necessárias pelo facto da sua prisão todos os reclusos devem continuar a gozar dos direitos do homem e das liberdades fundamentais, enunciados na Declaração Universal dos Direitos do Homem ...;
  3. Todos os reclusos devem ter o direito de participar nas actividades culturais e de beneficiar de uma educação visando o pleno desenvolvimento da personalidade humana;
  4. Devem ser criadas condições que permitam aos reclusos ter um emprego útil e remunerado, o qual facilitará a sua integração no mercado de trabalho do país e lhes permitirá contribuir para sustentar as suas próprias necessidades financeiras e as das suas famílias;
  5. Com a participação e ajuda da comunidade e das instituições sociais, e com o devido respeito pelos interesses das vítimas, devem ser criadas condições favoráveis à reinserção do antigo recluso na sociedade, nas melhores condições possíveis;

Para tanto, pensamos que os serviços centrais prisionais devem investir em novos desafios e novos rumos que impliquem uma aposta política que articule áreas diversas - saúde, educação, trabalho, onde a articulação e a cooperação do Estado com a sociedade civil contribua para dignificar o recluso/cidadão. Nesta perspectiva, é indispensável uma actuação transversal que aposte na formação dos técnicos prisionais (professores, guardas, directores, psicólogos...), componente essencial para uma mudança de relação com os reclusos, relevando o acessório dos controlos técnicos e burocráticos, criadores de novas legitimidades que em nada contribuem para o bom funcionamento do sistema prisional. Há que olhar retrospectivamente para a política prisional do passado, orientando-a no futuro para uma prática reflexiva que contribua para a resolução dos problemas reais dos reclusos, delineando estratégias que tenham sempre presente um conjunto de questões importantes, nomeadamente o reconhecer e compreender as dificuldades em que vivem os reclusos, assim como enfatizar e valorizar experiências e saberes tão importantes para a sua autoestima. Com esta postura caminhamos certamente, em última instância, para a sua socialização.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 112
Ano 11, Maio 2002

Autoria:

José M. Teles Sampaio
Professor no Estabelecimento Prisional de Viseu
José M. Teles Sampaio
Professor no Estabelecimento Prisional de Viseu

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