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"Vou plantá-lo e pô-lo ao sol"

"Um dia sonhei montanhas,
terras e gente esquisita,
sem saber que essa gente
ainda no meu mundo habita.

Abandonado entre a gente
encontrei um cravo perdido,
censurado e esquecido.
Mas eu trouxe-o comigo.

Vou plantá-lo e pô-lo ao sol,
que é p'ra ver se ele cresce.
Que seja como um farol ,
Que dentro de ti floresce.

Está muito bem guardado,
Lá em casa, no canteiro,
Ele pode ser a salvação
deste mundo inteiro.

Rego-o todos os dias,
Para ver se cresce mais
Espero que ele se multiplique
Por muitos outros iguais".
(...).
(Joel, 16 anos)


Encontrei nas minhas gavetas este poema de um aluno do 11º ano de uma escola pública. De repente, dei-me conta da pertinência desta mensagem para os tempos que correm. Estamos prestes a festejar o 28º aniversário da "revolução dos cravos", acabamos de conhecer o programa do XV Governo Constitucional. Será que este jovem poderá manter a esperança de que o "cravo perdido, censurado e esquecido", agora bem cuidado no seu canteiro, será bem regado pelos responsáveis políticos e cidadãos da nossa nação?
Ao analisar o programa do governo e, em particular, as linhas programáticas para a educação, surgem-me inquietações e o receio de que esta juventude, não "rasca", veja defraudada as suas expectativas em relação ao seu presente e futuro. Apesar de no referido programa se afirmar a necessidade da promoção da cidadania, terão as crianças e os jovens possibilidades, de facto, de a exercer?
As palavras de ordem que atravessam o programa do governo são: terminar com o monopólio da escola pública, restabelecer a autoridade na escola, moralizar, "respeito por valores como o trabalho, a disciplina, a exigência, o rigor e a competência, na busca da excelência", preparar os jovens para os desafios da globalização, dar resposta às necessidades de cada aluno, "prosseguindo metas ambiciosas aferidas internacionalmente e combatendo as assimetrias sociais e regionais que tanto se têm acentuado nos últimos anos". Enfim, um elenco de orientações que permitem "arrumar a casa", neste caso, a escola, no qual "a discussão ideológica não interessa" (Durão Barroso, na apresentação do programa na Assembleia da República). Será deste modo que os alunos se formam para a responsabilização e para a cidadania? Quando as normas, os valores, as condutas sociais, as rotinas escolares, quando "a realidade" é construída e imposta pelos imperativos da globalização, estamos a formar ou a colonizar os nossos jovens?
Vários pensadores actuais têm reflectido sobre as consequências destes novos mandatos para a educação: aferir a educação às exigências do mundo globalizado, do mercado e da competitividade. A relação entre a educação e a globalização é muito complexa, e não é este o local apropriado para uma discussão desta natureza. No entanto, um aspecto ressalta com particular evidência. A globalização tem disseminado um ethos consumista e hedonista que transforma o clássico, "penso, logo existo" pelo moderno "só estou bem a consumir e se consumo, logo existo" (Carlos Tê). Não é nada de novo afirmar que está a ser reconstruído um novo currículo oculto de escolarização, fruto dos novos significados importados do mundo empresarial. Como referiu Stephen Ball, num dos seus trabalhos recentes, para além de se estar a transformar a forma de oferta de educação, a experiência de aprendizagem e a natureza da cidadania, poder-se-á estar também a redefinir o próprio significado do Homem. Lanço daqui um repto aos leitores: leiam atentamente o novo programa para a educação portuguesa e identifiquem que tipo de sociedade, de cidadania e que homem pretendemos construir e formar.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 112
Ano 11, Maio 2002

Autoria:

Maria Emília Vilarinho
Departamento de Sociologia da Educação e Administração Educacional da Univ. do Minho
Maria Emília Vilarinho
Departamento de Sociologia da Educação e Administração Educacional da Univ. do Minho

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