Algures, em 31 de Agosto de 2007.
Querida Alice,
O prometido é devido: a escassos dias de conheceres o mundo novo da escola
que será a do teu tempo, o teu avô vem contar-te histórias da escola que foi
a de velhos mundos de outros tempos.
A ideia de Escola é muito antiga. Já na Grécia de há milhares de anos havia
quem acreditasse serem os seres humanos capazes de buscarem, em si próprios
e entre os outros seres, a perfeição possível. Mas, com a passagem do tempo,
essa Escola deixou de fazer sentido, porque deixou de se perguntar se faria
sentido ficar parada, a ver passar o tempo. E, assim como um senhor chamado
António Vieira pregava aos peixes, por serem os humanos incapazes de ouvir,
nesse tempo, o teu avô enviava recados às aves, porque muitos professores já
não sabiam ouvir. Mas passemos à história que hoje tenho para te contar...
Era uma vez, um reino encantado e junto ao mar. Encantado, porque uma fada má
transformara todos os seus habitantes em pássaros. Junto ao mar, porque convém
ao enredo da história.
No reino encantado, havia cidades e, para além dos muros das cidades, outras
cidades e outras escolas. Estas escolas de aprender a voar eram quase todas
iguais entre si. E iguais a essas eram outras escolas dentro das cidades das
aves.
As avezinhas aprendizes eram todas diferentes umas das outras. Havia o rouxinol
e o seu maravilhoso trinado; havia a calhandrinha e o seu canto monótono. Ia
à escola o melro saltitante e o beija-flor de voo gracioso. Mas o manual de
canto era igual para todos, o manual de voo era igual para todos. Ensinava-se
o piar discreto e em coro. Praticava-se o voo curto, de ramo para ramo.
Havia o manual para as aulas de piação. Nas aulas dadas pelo manual, os papagaios
treinavam os seus pupilos no decorar melopeias sem sentido. Todos ao mesmo tempo,
no mesmo ramo, na cadência imposta pela batuta do papagaio instrutor.
Havia o manual (igual para todos) utilizado pela coruja para o ensino do cálculo
da velocidade e da direcção de voos jamais materializados. Os voos lidos no
manual eram, obrigatoriamente, muito curtos e obedeciam a critérios de que as
jovens aves ignoravam o fundamento. Por sua vez, o galo ensinava o bater de
asas de voos simulados, e impunha aos jovens pássaros a repetição do teórico
cócórócar que os faria conformar-se com o destino de habitar gaiolas
e acatar as hierarquias das bicadas.
Copiava-se pelo manual de História a História oficial. Outro manual orientava
o milhafre que, nas aulas de sobrevivência, ditava a quantidade de milho, farelo,
ou couve picada, da ração diária a dar à criação.
Periodicamente, os mochos submetiam o receoso bando de aprendizes ao estranho
cerimonial dos testes. As provas eram iguais para todos, num tempo igual para
todos, com todos os pássaros aprendizes fechados no mesmo espaço. Se o teste
fosse de voo planado, ainda que, lá fora, soprasse um vento propício ao looping,
do lugar não saíam. E pouco importava que as asas do albatroz fossem dez vezes
maiores que as do estorninho. Às aves mais lestas eram cortadas as asas, para
que acompanhassem o ritmo do mocho. E as avezinhas que não conseguissem bater
as asas ao compasso das restantes ficavam, irremediavelmente, para trás. Depois
de identificadas as aves deficientes, encaminhavam-nas para o cativeiro dos
voos alternativos, ou submetiam-nas a aulas de recuperação ministradas por corvos
especialistas em voo rasante.
Encerrados nas gaiolas douradas da instrução, os jovens pássaros definhavam
na repetição de rotinas. Se a calma reinante era perturbada por um grito, ou
pela súbita mutação da graciosidade do voo num violento choque de asas, tudo
voltava ao normal e sem demora ... O método era a domesticação. Mas, se perguntássemos
aos adestradores porque domesticavam, não saberiam que resposta dar.
As personagens centrais da nossa história serão as gaivotas. Para dizer a verdade,
apenas um pequeno bando de gaivotas dissidentes. Um dia, decidiram abalar dos
rochedos junto ao mar e ir à aventura terra adentro.
Aves inquietas e curiosas, arriscavam descer ao fundo de cavernas que tinham
servido de refúgio a piratas. Num dos mais profundos recantos de uma das mais
profundas cavernas, encontraram um cofre. Dentro do cofre, velhos pergaminhos.
Leram-nos. E o súbito achado despertou o desejo de partir.
Num dos dias do seu longo peregrinar, as gaivotas chegaram a uma terra entre
dois rios. Era um lugar onde as águas, que deveriam saciar a sede a todas as
aves e refrescar as penas nas tórridas tardes de Estio, corriam turvas e em
proveito de alguns passarões.
Dessa aventura te falarei na próxima carta.
Com amor,
O teu avô José.
José Pacheco
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