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Das escolas aos supermercados do ensino

1. Às escolas públicas chegam crianças e jovens oriundos de todos os grupos sociais. É uma variedade de culturas e de comportamentos tão grande quantos os alunos em presença. À escola pública pede-se que os ensine e eduque a todos. Uma das várias vantagens da escola pública, em relação à escola privada, é a sua demonstrada capacidade de acolher todos independentemente das suas capacidades ou incapacidades. A escola pública abre as portas aos que a procuram sem filtrar ou escolher os que nela entram. A escola privada escolhe, filtra, rejeita, selecciona o produto com que quer trabalhar.
A escola pública acolhe crianças e jovens entusiasmados pelo estudo e outros que detestam estudar. Recebe e responde a crianças portadores de várias deficiências. A escola privada ou particular, quando muito, especializa-se e faz da deficiência um bom negócio. A escola pública esforça-se por tirar partido do que cada aluno é. A escola privada escolhe o produto, selecciona o "material" a trabalhar e escolhe aqueles que prometem render mais com gastos mínimos.
Por todas estas diferença e muitas outras fazer "rankings" em que se misturam os resultados de exames de alunos de escolas públicas e privadas é um disparate, uma burla.
Comparar os resultados dos exames do público e do privado é como comparar alhos com bugalhos. Não se trata do mesmo serviço, da mesma função social, do mesmo grau de dificuldades de trabalho nem dos mesmos objectivos. O que é espantoso é que tendo alguns feito tais comparações, relativamente aos exames do ano passado, se tenha concluído que, apesar das maiores dificuldades em trabalhar com os jovens do sector público e da ausência de selectividade neste sector de ensino, as diferenças dos resultados não tinham significado. Isto quer dizer que o público, que não escolhe com quem trabalha e que a todos atende, em termos gerais trabalha melhor do que o privado que acolhendo os escolhidos, os mais protegidos e familiarmente apoiados, não consegue melhores resultados. O espaço público é aquele onde se pratica e aprende a solidariedade, onde todos aprendem a lidar e a viver com todos. O espaço privado é aquele onde se segrega, selecciona, se elitiza onde se aprende a separar os que mandam dos que devem viver para obedecer. A escola pública e a privada representam dois modelos de sociedade, duas formas diferentes de entender as relações entre as pessoas. O espaço público é o da cidadania - dos direitos de todos e para todos. O espaço privado é o da méritocracia - o dos direitos apenas para os que alcançam os objectivos que o poder dominante decide serem os merecedores de eleição e recompensa. O espaço público pratica a convivencialidade social. O espaço privado o darwinismo social. Agora que muitos enchem a boca com a exaltação e a bondade da actividade privada e com a maldade da escola pública, convém não perder estas pequenas realidades de vista. Convém escolher e tomar partido.

2. O novo governo apresentou o seu programa para a educação. Trata-se de um texto pobre, prolixo, palavroso, oco, um arrazoado de clichés, de ideias feitas muitas herdadas do neoliberalismo já em desuso. O "programa" é uma miséria, os pressupostos que se adivinha que o suportam um arrepio. Nele não se vislumbra uma ideia para a educação, um rumo, um objectivo, uma meta, estratégias. A gente que o escrevinhou, adivinha-se, está atarantada com a responsabilidade recebida, nervosa com a situação em que se encontra, excitada por chegar onde não imaginava vir a chegar, aflita porque entre a conversa de corredor da Assembleia da República, a discursata e a prática de governo, vai uma enorme distância.
O politicamente correcto recomenda que aos governantes que chegam se dê o benefício da dúvida.
Eu dou o benefício da dúvida quando tenho dúvidas. No caso presente não tenho. Os fazedores deste programa, pelo que já escreveram e pelo que já disseram, são antiquados, não têm perspectivas, são navegadores à vista, balofos e tacanhos. Vão fazer o que calhar. Com eles a educação em Portugal corre o risco de em quatro anos se atrasar quinze.
Ao ler o programa, as entrevistas que já deram, as declarações que já fizeram, fazem-me regressar desagradavelmente ao passado, ao tempo do Portugal pequenino, rural, remediado e remendado, metido no seu cantinho, a fazer e a discutir as suas coisinhas, "pobrezinho mas honrado", trabalhador, reverente, untuoso e disciplinado. Um regresso ao Portugal dividido entre uma minoria de senhoritos e senhoritas e uma maioria de parolos. O Portugal do Zé, do Zézito e do Zézinho. Do João e do Joãozinho. Do Miguel e do Miguelinho. O Portugal do velho António... o Salazar.

3. Esta gente pequenina não entende a função da escola, a sua especificidade, nem entende os professores e a profissão docente. Gosta de comércio e de fábricas, está seduzida pela cultura e a prática do negócio. Pensa que o moderno é transformar o pré-escolar e o 1º ciclo em minimercados de ensino e os outros sectores, se deus ajudar e houver investidores, em supermercados do mesmo ramo de negócio.
A verdadeira ambição que se adivinha no programa apresentado para a educação é a entrega da educação pré-escolar e do 1º ciclo às autarquias locais e às Instituições, mais ou menos religiosas, de Solidariedade Social (IPSS?s) e a preparação dos restantes sectores de ensino para uma privatização gradual. O sistema que consideram ideal é aquele em que a educação pré-escolar e o 1º ciclo sejam propriedade partilhada entre autarquias e IPSS?s e ao restante ensino básico e ao secundário seja retirado o carácter público e desmembrado em privado e popular.
Um passo para atingir estes objectivos é a divulgação dos "rankings" das escolas conjugada com a possível introdução do cheque-ensino. Os "rankings" permitirão separar o trigo do joio, os jovens filhos de gente limpa, dos filhos de gente suja. O cheque-ensino permitirá que os contribuintes - em Portugal os que pagam são os trabalhadores assalariados - paguem e ajudem a subsidiar a subsistência do negócio privado. O resto da população, os pobres, os sujos, os sem mérito, terão a sua escola, paga parcamente pelo Estado, que já não sendo pública - porque não desempenha a função pública - será apenas popular.

4. No mundo capitalista em que vivemos, onde tudo se transforma em mercadoria, onde tudo se compra e se vende, o ensino é visto por alguns como apenas mais um negócio. Em Portugal, onde o sector público de ensino é ainda uma realidade, os novos governantes vêm aqui o que na sua linguagem chamam "uma janela de oportunidade". Querem abrir esta janela e transformar a educação e o ensino em mais um negócio de alguns. Compete aos que defendem a cidadania por oposição ao negocismo, o direito de todos e não o direito de alguns, a solidariedade e não a selectividade, a oferta de saber e de conhecimento a todos e não apenas a alguns, o fim dos guetos culturais e sociais, compete a estes explicar que a educação e o ensino são uma "janela de oportunidade" para a democratização e o progresso do conhecimento, do saber e da humanidade e não do negócio.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 112
Ano 11, Maio 2002

Autoria:

José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.
José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.

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