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Manifesto contra os Dantas

Como se tivesse chegado a Hora da "autognose do país real" de que fala Eduado Lourenço e Portugal estivesse, finalmente, a ver a Luz do futuro ao fundo do túnel que começou a ser escavado ( pelas leituras dos antigos cronistas), com a insurreição nacional de 1383-85, quando o povo se ergueu contra a "ordem estabelecida", e que (pelas leituras dos cronistas pós-modernos) teria acabado com a revolução de Abril de 1974, os portugueses que ainda lêem jornais e vêem televisão assistiram, durante a última temporada eleitoral, certamente atónitos, como que diante da ameaça do Armagedão ou do "puro caos" imaginado pelo famoso sociólogo demoliberal Samuel P.Huntington, à cruzada ou pandemia que, sob a forma de "Manifestos", movimentaram os "guias da opinião" contra tudo (e era quase tudo) o que estava errado em Portugal por culpa dos "azuis e encarnados" ( como os "pinta" Almada Negreiros).
Se fosse vivo, o Pintor-Escritor tomar-se-ia de raiva ou de riso ao verificar a multidão de manifestantes que plagiaram os seus textos de intervenção patriótica, designadamente os "Manifestos" e "Ultimatuns" produzidos há perto de três quartos de século.
Eles foram os políticos da Oposição contra o Governo e o Governo contra a Oposição; os empresários contra o Estado e o Estado contra os empresários; os professores contra os alunos e os alunos contra os professores; os educadores contra a Educação e a Educação contra os educadores; os empregados contra os patrões e os patrões contra os empregados. Eles foram os artistas, os escritores, as mulheres, os jovens, as famílias, os católicos, os reformados, os militares, os polícias, os comerciantes, os agricultores, os médicos, os desportistas, os ricos e os pobres - todos contra um Estado alegadamente constituído pelos mesmos Dantas que Almada Negreiros representava num único que era "um ciganão, sabia gramática, sintaxe, medicina e fazer ceias pra cardeais, mas de quem ainda se duvidava que não valia nada, não sabia nada, e que nem era inteligente, nem decente, nem zero!"
Em 1915, por facilidade da época, em que o mesmo Dantas podia representar o mesmo Portugal da Academia de Letras, da Sociedade de Geografia e da Exposição do Mundo Português, Almada alvejava-o facilmente: era o Júlio. Hoje, teria dificuldade em endereçar a mesma apóstrofe: "Portugal inteiro há-de abrir os olhos um dia - se é que a sua cegueira não é incurável e então gritará comigo, a meu lado, a necessidade que Portugal tem de ser qualquer coisa de asseado! Morra o Dantas! Morra! Pim!"
E pela mesma altura (antes de, em 1933, condescender que havia "um Portugal sério, um Portugal que trabalha, que estuda; curioso, atento e honrado", que se defrontava contra os "manhosos e falsos prestígios, os dois males de que sofre a vida portuguesa"), bradava, no seu "Ultimatum Futurista", em cínica, cruel, paroxística e escatológica objurgatória: "Coragem, Portugueses, só vos faltam as qualidades."
Disse outro famoso sociólogo, George Steiner, que "cada época histórica contempla-se no quadro e na mitologia activa do seu próprio passado".
Se é verdade, dá que pensar...


  
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Edição:

N.º 111
Ano 11, Abril 2002

Autoria:

Leonel Cosme
Escritor - Jornalista, Porto
Leonel Cosme
Escritor - Jornalista, Porto

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