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Uma República mal educada?

Se, como afirma o Manifesto para a Educação da República, a República estiver a "educar mal os seus filhos", estaremos então condenados à condição de uma República mal educada.
A situação de catástrofe nacional vem sendo anunciada, tendo especialmente em consideração os resultados de testes e estudos internacionais, aceites sem qualquer hesitação como boa medida do esforço de democratização e de mensuração da "educação dos portugueses".
Subordinada a escrutínios constantes e a operações contabilísticas sistemáticas (incluindo as mais grosseiras e simplistas, de que resultaram por exemplo os rankings de escolas), a educação contábil instalou uma verdadeira obsessão avaliativa, confundindo exames com avaliação e mais avaliação com mais e melhor educação.
Mas não será muita pretensão querer avaliar a "educação dos portugueses", drasticamente reduzida às matérias constantes dos exames escolares e a uma concepção "bancária" (como diria Paulo Freire), através de testes estandardizados de âmbito internacional? E, mais ainda, admitir que os caminhos percorridos até hoje já justificariam a démarche e legitimariam melhores expectativas?
Logo quando se atingem níveis de escolarização sem precedentes na história da nossa cultura pouco letrada, ou apenas letrada para poucos, não obstante os graves problemas de acesso e de sucesso que ainda persistem, é que os elementos de democratização são associados, contraditoriamente, à crise, à indisciplina, à pobreza e mesmo à barbárie. A ideia de que uma escola democrática, para todos, é incompatível com uma escola de qualidade e só poderia resultar num abaixamento do nível, representa uma reacção conservadora, bem conhecida em diversos países nas últimas décadas. Ela exprime um certo pânico e sentimentos de risco face a comparações que parecem indiciar, e em todo o caso têm servido para justificar, crises de hegemonia económica ou cultural, abrandamentos na produtividade, crescimento do desemprego, perda de vantagens competitivas, entre outros problemas típicos dos países centrais. Muita pretensão, de novo, na importação desses problemas, esquecendo subitamente o nosso lugar, as taxas de analfabetismo mais elevadas da União Europeia, os baixos níveis de escolarização entre a população activa e, em suma, o lugar que a educação básica não ocupou entre nós até há pouco tempo.
Adivinha-se a nostalgia despertada pelas memórias de uma escola antiga, mais eficaz e disciplinadora, sobretudo porque mais homogénea e mais selectiva logo à entrada. Mas é por isso mesmo que o nosso atraso educativo é de muitas décadas, exactamente devido às resistências de democratização da educação, da sua inscrição plena no âmbito de políticas sociais igualitárias, de bem estar e de universalização do acesso a uma escola de massas. E é também por isso que nem todo o investimento do mundo poderá agora, instantaneamente, resgatar a educação e a escola públicas de um tão longo processo de discriminação social e de profundo descaso, mesmo que fosse verdade que somos "um dos países da União que proporcionalmente mais gasta com a educação".
O problema dos manifestos que convocam à "batalha inadiável da educação" é que o apelo surge despolitizado e algo retórico, de tão repetido através das mesmas palavras e quase sempre da mesma falta de consequências, desde a "batalha sem fim" do ministro Francisco Leite Pinto e a "nova cruzada" do ministro Inocêncio Galvão Telles, à "grande, urgente e decisiva batalha da educação", de Marcello Caetano e de seu ministro José Veiga Simão.
Inscrever a educação no âmago dos debates públicos constitui um objectivo estimável e necessário. Porém, a emergência de novas ideias e propostas para a educação dificilmente pode ocorrer a partir de diagnósticos superficiais, repletos de ideias velhas e de lugares comuns. Com origem em intelectuais, o mínimo que se poderia esperar é que a expressão da sua cidadania observasse as regras elementares do trabalho intelectual: conhecer o que outros antes de nós estudaram, produziram e investigaram sobre o assunto, saber reconhecer a origem das nossas ideias-chave, ultrapassar as evidências de senso comum e as armadilhas ideológicas.
É também por tudo isto que concluo que a solução não reside em "mobilizar as elites", mas em promover a educação, escolar e não escolar, de todo um povo. Afinal as nossas elites foram quase sempre parte do problema e não da solução; mesmo nos casos em que se revelaram cultas e educadas, mas frequentemente formadas à margem de um projecto educativo humanista, orientado para o esclarecimento e a emancipação, e totalmente descomprometidas com a educação democrática de todos os seus concidadãos.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 111
Ano 11, Abril 2002

Autoria:

Licínio C. Lima
Instituto de Educação e Psicologia, Univ. do Minho
Licínio C. Lima
Instituto de Educação e Psicologia, Univ. do Minho

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