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Ensino profissional: uma falsa alternativa

No domínio da educação tudo se põe em causa: processos, metodologias, objectivos, finalidades, competências. Levantam-se inúmeros problemas, apontam-se caminhos, formulam-se estratégias, redifinem-se conceitos, tudo convergindo para reformas curriculares amplas e, se possível, estruturais. Tudo isto é positivo e pode ter resultados importantes, desde que muitas mentalidades se libertem de preconceitos impeditivos de uma verdadeira reforma, o mais revolucionária possível.
No âmbito deste reequacionamento de questões há uma que considero particularmente preocupante: a questão do ensino profissional, vocacionado para vertentes práticas e direccionadas. Tanto na comunidade educativa como política, pais, professores, auxiliares de acção educativa, líderes partidários, ouço amiúde conversas e declarações recordando com lamentável saudosismo o famigerado ensino comercial e industrial, como panaceia milagrosa para muitos dos problemas que afectam actualmente o ensino. Considero abominável.
Com efeito, a este tipo de ensino, implementado nos tempos anteriores ao 25 de Abril, subjazia uma filosofia de exclusão e, essencialmente, discricionária, concomitante, aliás, com os pressupostos sócio-políticos do fascismo: elitismo, discriminação, ausência de liberdade, espírito de subserviência e imobilismo social. Tratava-se de um modelo alternativo a quem, por razões sociais e/ou económicas, não podia seguir o curso geral dos liceus. Inerente a esta solução estava uma mentalidade totalitária, impondo a vontade do mais forte sobre o mais fraco, do mais rico sobre o mais pobre, do mais apto intelectualmente sobre o menos dotado (ressalvando toda a subjectividade aferida a este juízo de valor).
Os actuais cursos profissionais ou profissionalizantes alinham fundamentalmente por estes pressupostos, camuflados numa amálgama confusa de propostas, onde se misturam boas intenções com propósitos claros de resolver com evidente facilitismo o problema da iliteracia e da falta de cultura. Também estes cursos acabam por ser impositivos, unilaterais e pautados pela mediocridade das suas componentes disciplinares. Assumem-se cada vez mais como uma falsa alternativa ao ensino geral, remetendo os alunos com insucesso escolar para opções de vida que, na maior parte das vezes, não resultam do exercício da sua liberdade. São, pois, coercivos. Em última análise, produto de uma mentalidade reaccionária.
O aluno tem 15 anos e não passa do 6º ano? Manda-se para uma escola profissional; dará certamente um bom electricista, mecânico ou empregado de mesa. "E - ouvi eu de um colega - ficam tão engraçados de uniforme branco, botões dourados e poses de mordomo!". Enfim, adiante.
E se se tratar de uma opção consciente da parte do aluno? Excelente. Deverá ter essa oportunidade e as condições necessárias à realização do seu objectivo profissional. Mas que não se descurem nesses cursos disciplinas como as Ciências da Natureza, Português, História, Língua Estrangeira, Matemática, Educação Musical, Educação Física.
Que raios! Porque não poderá um electricista dominar com alguma autoridade grandes civilizações do mundo antigo e a sua importância para o surgimento das sociedades modernas? Ou então, compreender devidamente a teoria geotectónica das placas, sabendo que o tempo geológico faz mover continentes e oceanos? Ou que dois trolhas, entre duas aplicações de massa, discutam Kanto, Hegel ou Marx? Ou um mecânico, debaixo de um carro, atarefado a vedar o bujão do óleo, recite Camões ou Goethe, este último em alemão?
Chocante? Ridículo? Pois não o deveria ser.
Mas, insistirão alguns, e aqueles que não vão mesmo lá, não lêem uma frase nem escrevem uma palavra? Bom, sugiro o seu ingresso numa faculdade de Medicina, Direito, Ciências ou Letras. Pode ser que assim se resolvam, futuramente, os problemas que eternamente assolam a educação, saúde e ensino. E entre duas aulas, duas operações ou duas audições, discutam a última derrota do Benfica ou que o Jardel terá escrito na camisola quando marcar a próxima grande penalidade.
Urge um grande esforço para mudar mentalidades, para que qualquer reforma no ensino possa ter exequibilidade e apresente, logo nos seus pressupostos ideários, uma efectiva democraticidade. Enterre-se Salazar, de uma vez por todas!


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 111
Ano 11, Abril 2002

Autoria:

Paulo Frederico Ferreira Gonçalves
Professor do 2º ciclo na Escola Básica S. Torcato - Guimarães
Paulo Frederico Ferreira Gonçalves
Professor do 2º ciclo na Escola Básica S. Torcato - Guimarães

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