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Absolutamente

A campanha para as legislativas produziu algumas metáforas e uns quantos OFNIs dignos de registo, tanto à direita como à esquerda do espectro político. Nenhum dos OFNIs escapou ao olhar vigilante do "comendador Marques de Correia" ou, se se preferir, do seu alter-ego, o jornalista Henrique Monteiro. É pois com a devida vénia que aqui retomamos o assunto, sob um ponto de vista algo diferente do seu.

Metáforas

Já tínhamos "a mão invisível" do mercado, uma invenção dos clássicos da economia política, bem como a "direita" e a "esquerda" da política, uma sequela topográfica da Assembleia Nacional saída da revolução francesa de 1789. Passámos a ter também uma "mão de ferro" e um "braço direito" a quererem ser governo. No mundo não faltam fanáticos de diversas espécies. Passámos a ter mais uma: os "fanáticos de Portugal", que reduziram a palavra com que se identificam à sua primeira sílaba: "Somos fãs de Portugal".
Valha a verdade que também tivemos criações úteis, como "bolítica" (a fusão da política com a indústria do pontapé-na-bola) que vi referida na rubrica "cartas dos leitores" de um semanário. Com o campeonato europeu de futebol em 2004, 10 estádios em construção e milhões de euros de permeio, auguro-lhe um futuro promissor. Mas produzir metáforas (ainda que de duvidosa qualidade) e novos vocábulos é uma coisa, produzir OFNIs é outra.

O avô masoquista

Num cartaz partidário uma criança pergunta: "avô, porque é que trabalhaste tanto para ter uma reforma tão baixa "? A pergunta é intrigante. Mas é possível imaginar um contexto que a torne inteligível. O avô: "Quando fores crescido, eu explico-te". A criança: "Avô, não sejas desmancha-prazeres. Sabes que sou uma criança superdotada". O avô: "Mesmo assim, penso que não é um assunto próprio para a tua idade". A criança: "Pensas que eu não sei ? És como senhor Masoch, o autor daquele livro que tens à cabeceira: para ti o sofrimento é a melhor das prendas. Foi por isso que sempre recusaste todos os aumentos de salário, alegando que o teu maior prazer seria o de te aposentares com a reforma mais baixa possivel".
Há, porém, uma outra interpretação, muito mais verosímil. A pergunta posta na boca da criança foi escrita por adultos. As palavras utilizadas são idênticas às do idioma Português. Mas a frase está escrita na sintaxe (e na ortografia) inimitável do Brutuguês. Se quiséssemos traduzi-la para Português, obteríamos algo como:"Avô, se trabalhaste tanto porque é que tens uma reforma tão baixa? ", ou, em alternativa, "Avô, por que trabalhaste tanto e tens uma reforma tão baixa? "

Outros tiros nos pés

Num outro cartaz do mesmo partido lia-se: "Fazer agora o que não fizeram em seis anos!". A frase não tem ponta por onde se lhe pegue. É Brutuguês em estado puro. Tanto pode ser lida como um apelo ou uma injunção do partido do cartaz aos outros partidos ("Tratem de fazer agora o que não fizeram em seis anos!") ou como uma afirmação peremptória ("Alguém quer fazer agora o que não fez em seis anos!"), ou como uma ameaça ("Atrevam-se a fazer agora o que não fizeram em seis anos"!).
Não se pense, porém, que a dificuldade em destrinçar o Português do Brutuguês é apanágio de um só dos lados do espectro partidário. Um partido da esquerda tinha um cartaz com este OFNI: "Imposto sobre as grandes fortunas. Absolutamente". Dir-se-à que a frase foi prejudicada por uma gralha: um ponto de interrogação a menos.
Experimentemos: "Imposto sobre as grandes fortunas? Absolutamente". No Português de Portugal a frase continua indecidível. Não se sabe o que faz ali o "absolutamente". No Português do Brasil o mesmo advérbio, neste contexto, vale por uma negativa reforçada ("nem pensar", "de modo nenhum"). Mas talvez os autores quisessem ter dito: "Imposto sobre as grandes fortunas ? Óbviamente que sim ". Se assim foi, é absolutamente seguro que o não conseguiram.


  
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Edição:

N.º 111
Ano 11, Abril 2002

Autoria:

José Manuel Catarino Soares
Instituto Politécnico de Setúbal
José Manuel Catarino Soares
Instituto Politécnico de Setúbal

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