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A sicialinização do mundo - Ao lixo social

Há quem defenda a ideia de que estamos a chegar ao fim do ciclo do neoliberalismo e de que está iminente o regresso do ciclo da valorização do trabalho. Se fosse assim, as últimas eleições em Portugal ter-nos-iam colocado a viver em contra-ciclo. No entanto não me parece, pelo menos a curto prazo, que o ciclo do neoliberalismo vá sofrer interrupção.
As últimas décadas foram, em crescendo, o que o escritor Leonardo Sciascia chamou de sicialinização do mundo. A globalização, tal como vem sendo construída pelos neoliberais, tem feito do mundo uma Sicília, o paraíso das máfias, a economia e a política cada vez mais conduzidas de acordo com práticas mafiosas. As fronteiras entre a economia legal e a ilegal estreitaram-se até quase desaparecerem em muitos lugares. Impôs-se o estilo do negócio dos mafiosos. Ambição elevada ao máximo. Exploração desenfreada do trabalho. Desprezo pela vida humana. Lucro como objectivo primordial. Dinheiro como bem supremo. Ausência de escrúpulos. Competição até à destruição do competidor. A violência como recurso. A metralhadora ao serviço da economia. A rapina em relação a povos e países terceiros. A política ao serviço da ganância. A mentira como cartão de visita. A fuga aos impostos. As leis feitas à medida dos poderosos. A mercantilização de tudo. Passaram a ser valores da civilização ocidental e até pressupostos da chamada sociedade livre.
As máfias organizaram-se em rede mundial. Concertaram os interesses dos negócios legais com os ilegais. Criaram paraísos fiscais. Concentraram poderes. Distribuíram bens, poderes, direitos e deveres entre si. Controlados os negócios privados iniciaram o desmantelamento dos Estados e o processo de apropriação privada dos bens públicos.
Não tenho fé cega na bondade do sector público, o qual tem qualidades e defeitos e deve ser construído e desconstruído permanentemente. Mas não acredito nas virtudes imaculadas do sector privado. Está por provar que as doenças do sector público sejam resolvidas pelo remédio da intervenção privada. Em muitos casos o sector privado é bem pior do que o público em termos de racionalidade, eficiência, custos, qualidade e benefícios.
A propaganda neoliberal vai alimentado a crença e criando o mito de que o sector público pertence ao "eixo do mal" e o privado é sustentado por um sopro divino. Sustentados nesta crença os donos do mundo vão adquirindo tudo o que pertence à comunidade. Voltando a Itália, vão desenvolvendo a Berlusconização do mundo, isto é, a concentração na pessoa de poucos do poder que conta: o económico, o mediático, o político e até o do futebol.
A ideia de que o mercado, através da concorrência, favorece os interesses dos povos é um embuste. O poder e os negócios estão cada vez mais concentrados, mais capazes de impor os seus interesses. Os povos estão mais indefesos perante as máfias mundiais. Mais indefesos porque o Estado, instrumento de defesa dos povos, está a ser vendido aos privados.
É (n)este mundo cada vez mais sicilialinizado e berlusconizado que nos é dado viver. Interessa-me a internacionalização que nos apróxima de uma relidade do tipo: somos todos cidadãos do mundo. Não me interessa a globalização que afirma: somos todos clientes do supermercado mundial.
As últimas eleições em Portugal acentuarão a pressão para o processo de privatização do Estado. A escola não vai ficar imune a estas "soluções". Tanto mais que o terreno tem vindo a ser preparado nos últimos anos.
A crítica que vem sendo feita à escola portuguesa não é a que ela merece. É uma crítica que não resulta da análise da realidade social que temos, mas tem vindo a ser imposta pela lógica mediática em associação com os apetites privados.
A lógica mediática pouco tem a ver com os interesses reais das pessoas. Os meios de comunicação tratam a pessoa na óptica do cliente, do espectador, do consumidor e não na óptica da cidadania.
Quando a problemática da escola é abordada na singeleza da lógica mediática a pessoa do aluno, do professor ou mesmo o outro interveniente no processo, o encarregado de educação, são reduzidos à condição de clientes do sistema comunicacional. É esta lógica mediática quem fabrica os títulos das notícias e a escolha das temáticas que interessa impôr à opinião pública. A lógica mediática coloca a informação ao serviço do objectivo empresarial da facturação e do lucro. Não lhes interessa mudar a escola, resolver um problema, interessa-lhes vender jornais, aumentar as audiências. Não lhes interessa a profundidade e grandeza do oceano, mas só o barulho e a espuma das vagas. Interessa-lhes aumentar o potencial de facturação.
A descredibilização que a comunicação social vem fazendo da escola portuguesa corresponde a muitos interesses. Tem sido divulgada a ideia de uma escola pública má, com professores e direcções incompetentes, alunos preguiçosos, mal educados e violentos. Este quadro facilita a criação de condições para a privatização do sector. Para isso começarão por classificar as escolas, hierarquizando-as de acordo com o seu desempenho. Facilitarão depois a mobilidade dos alunos. Criarão escolas de primeira e de segunda. Umas a privatizar - com o Estado a pagar através de bolsas ou do cheque escolar - outras continuarão públicas e destinadas a acolher o "lixo social".
Mais do que querer uma escola pública promotora de aquisição de conhecimentos (função reservada aos privados) são muitos os que a querem como bode expiatório. Se a família não educa, responsabiliza-se a escola pública. Se os pais não têm tempo nem vontade para viver com os filhos, culpa-se a escola por não resolver os problemas que daí resultam. Se a política económica promove a exclusão social, a violência, a pobreza, a revolta, exige-se à escola pública que remedeie a situação. Culpa-se a escola pública por não qualificar com mestria a totalidade dos jovens em idade escolar, mas o mercado de trabalho rejeita os bem qualificados, paga mal a todos, exige cada vez mais trabalho escravo a cada um. A escola pública tende a ser cada vez mais o tapete social para debaixo do qual os mafiosos que governam o mundo varrem o lixo social que produzem. É para contrariar estas tendências que somos chamados a trabalhar.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 111
Ano 11, Abril 2002

Autoria:

José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.
José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.

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