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"A Reinvenção dos Caminhos e os Lugares: o estado e a engenharia social"

A modernidade, na sua celebração da racionalidade, assumiu que a acção do estado era ou podia ser uma espécie de engenharia que, a partir do conhecimento sobre a realidade social, poderia implementar as mudanças desejáveis. A transformação das sociedades era da ordem do domínio da mudança por parte daqueles que a tal desígnio se propunham: conhecendo as leis pelas quais a história acontece, o futuro poderia ser construído à maneira da engenharia social. Os revolucionários e os intelectuais transformadores dos séculos XIX e XX pretendiam dominar os processos de mudança social através da criação de instrumentos políticos que tal permitissem. Neste contexto, o estado aparecia como o dispositivo central para a condução da mudança no sentido do desejável.
Foi, efectivamente, na acção do estado que uma parte importante dos modernos viu o caminho para uma organização social que proporcionaria aos grupos e aos indivíduos relações mais justas e igualitárias. Lenine, para exemplificar, em O Estado e a Revolução defendia que entre ele e os anarquistas havia acordo quanto ao fim (a criação de uma sociedade sem classes), o que os separava eram os meios, isto é, a utilização do poder organizado do estado para a consecução desse fim.
Nas sociedades ocidentais, o estado tornou-se mesmo no eixo organizador do social e do individual, e durante o período áureo do estado-providência as questões da emancipação são quase totalmente entregues à regulação estatal: educação, saúde, habitação, etc., correspondiam a pelouros em que a acção organizada por parte dos aparelhos do estado procurava governar - no sentido foucaultiano - a vida dos cidadãos enquanto indivíduos.
O que está actualmente em discussão no espaço europeu é se o modelo do estado-providência é ainda um modelo a perseguir, sobretudo nos países como Portugal onde ele não se consolidou historicamente, ou se, dadas as crescentes críticas da sua ineficiência financeira e social, vindas quer dos sectores conservadores, quer dos neo-liberais, se deve abandonar definitivamente o modelo em favor da regulação pelo mercado ou a ela semelhante. É evidente que a estrutura da discussão é muito mais complexa do que este "ou" pode sugerir. De facto, se o estado providência se fundava numa lógica fiduciária assente no seu carácter intervencionista, o que actualmente parece estar em curso, sobretudo a partir dos anos 90, é uma substituição de um estado provedor por um estado avaliador, no qual os cidadãos são obrigados a responsabilizar-se pelo seu desempenho enquanto tal. A comunidade, neste trâmite, surge frequentemente como o mediador através do qual parece emergir uma sociedade providência onde o cidadão surge numa figura bricolada, híbrida, alguns dirão mesmo fragmentada, entre a identidade de cidadão, de indivíduo, de cliente, de utente e de parceiro.
Ora, esta discussão ganha outra espessura se for enquadrada no contexto da emergência de um paradigma em que a mudança social já não é concebida como sendo da ordem daquilo que é susceptível de ser dominado com base no conhecimento construído acerca dela. Vivemos numa época profundamente sociológica, quer dizer numa época em que os processos sociais são pensados e agidos pelos actores/agentes de uma forma sem precedentes. Contudo, este acréscimo de reflexividade, paradoxalmente, não contribui para um controlo mais forte das transformações sociais, pelo contrário, parece antes favorecer a impossibilidade de uma condução rígida desses mesmos processos. O conhecimento sociológico complexifica - multiplicando e diversificando - os processos sociais, tornando-os num Carro de Jagrená impossível de restritamente governar.
Pierre Bourdieu, em Contrafogos, sugeria que defender o não desmantelamento do estado-providência era uma forma importante de resistência. No entanto, esta resistência não pode confundir-se com o retomar da perspectiva da engenharia social, devendo, antes, ser integrada numa postura de investigação das implicações de uma nova forma de lidar com a mudança social que eventualmente possa não se confinar às determinações derivadas do mercado, da comunidade ou do estado. Por outras palavras, pode defender-se, por um lado, que as determinações se transformam em delimitações, que, por sua vez, são menos rígidas e menos directas na sua actuação - por exemplo, uma política educativa não é determinada pelos interesses de um grupo de empresários, contudo a sua inclusão na agenda da educação indica que o campo se encontra nalgum sentido delimitado - e, por outro lado, que o mercado, a comunidade e o estado são lugares políticos que, apesar do processo de pulverização da pós-modernidade, não se neutralizaram politicamente, mas, em vez disso, se heterogeneizaram. Assim, começam a reger-se pelo diálogo/confronto de diferenças e não pela acção política aparentemente dimanada da substância de cada um. Claro que a frequente incomensurabilidade das diferenças e a sua descaracterização pela desigualdade constituem obstáculos enormes. O resultado chama-se exclusão social. Voltaremos a falar sobre ele numa próxima oportunidade.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 110
Ano 11, Março 2002

Autoria:

António M. Magalhães
Univ. do Porto
Stephen R. Stoer
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. do Porto
António M. Magalhães
Univ. do Porto
Stephen R. Stoer
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. do Porto

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