Página  >  Edições  >  N.º 110  >  A palavra como maiêutica

A palavra como maiêutica

"Formação e Desempenho" é, agora, o nome deste espaço que me acolhe. Um pouco como quem precisa de conhecer os cantos à casa, quando nela se dá entrada pela primeira vez, também eu sinto necessidade de ir avançando, lentamente, neste novo espaço, tentando vencer algum daquele desconforto que é comum encontrar-se nas situações que se apresentam como novas.
Se me perguntarem donde vem esta sensação de estranheza, direi que é do "Desempenho" que faz parelha com "Formação". Talvez porque a sua entrada na designação deste espaço signifique o abandono do "Trabalho" que, antes, andava associada à antiga rubrica - "Formação e Trabalho" Convivemos durante largos meses, uns após outros, com alguma ritualidade, para não dizer alguns anos. Fomo-nos sustentando e aturando mutuamente, umas vezes com vivo prazer, outras com a dolorosa sensação de quem tem, apenas, um dever para cumprir. Sempre, porém, com um sentido de grande cumplicidade...
Penso que não estou a atentar contra o sentido da intimidade de quem quer que seja ao trazer para este novo espaço farrapos de confidências antigas.... Todos nós temos com as palavras os mais estranhos jogos de sedução e de repulsa. As palavras não são meros nomes, simples combinações fonéticas ou engenhosas articulações sintácticas. Elas são as melhores testemunhas das nossas vidas, ora silenciosas, discretas e comovidas, ora, ousadas, rebeldes, indignadas. E são também as melhores intérpretes do que somos, sobretudo do que queremos ser, quando nos empenhamos na construção do seu sentido. Reparem que disse "quando nos empenhamos na construção do seu sentido" e não "quando nos "desempenhamos" na construção do seu sentido"...
Talvez resida aqui, nesta pequena subtileza do "des", a razão de ser da minha relação de desconforto com o "desempenho" quando ele aparece ligado a "formação" para designar doravante este espaço efémero de aparição: "Formação e Desempenho".
É sabido que o "des", em geral, tanto pode significar negação como reforço. É o que podemos ver nos exemplos de "des-autorizar" e "des-infeliz", respectivamente. No caso concreto de "desempenho", porém, do "des" não se pode dizer que signifique, claramente, nem uma coisa, nem outra. Nem negação, nem reforço. De facto, "desempenho" não quer dizer o contrário de "empenho", no sentido de que onde há "desempenho" não pode haver "empenho"; tão pouco se pode esperar que "desempenho" signifique por princípio "empenho" reforçado. Quase se poderia dizer que a relação entre "empenho" e "desempenho" é, hoje, uma relação de perdição mútua que a "formação", estranhamente, não ajuda a deslindar. Na verdade, porquê "Formação e Desempenho" e não "Formação e Empenho"? Porquê a consagração na gíria profissional e até nos Estatutos dos Professores e Educadores" da primeira fórmula e não da segunda?
Mais do que a etimologia, talvez a "história" do quotidiano contemporâneo da escola nos ajude a perceber a hegemonia do "des". Talvez ela tenha mais a ver com o movimento de exteriorização de comportamentos normalizados, tais como os que são tipificados na "formação para o desempenho", do que no movimento da interiorização subjacente a processos de empenho ou de empenhamento na construção profissional. "Empenho" e "desempenho" remeterão, assim, para paradigmas diferentes de acção e de...formação.
E essa é uma "história" que cada um terá para contar, nem que seja na intimidade de si mesmo.


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 110
Ano 11, Março 2002

Autoria:

Manuel Matos
FPCE, Univ. do Porto
Manuel Matos
FPCE, Univ. do Porto

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo