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Manifestamente decepcionante

De repente Portugal transformou-se no país dos manifestos. Da educação da república, da família, da economia, da saúde, da justiça, das três formigas mutiladas no Alqueva. No momento em que escrevo aguardo que cheguem mais alguns manifestos. É que uma das características da classe dominante portuguesa é "fazer por ver fazer os outros". É uma classe que vive em circuito fechado. Estão acostumados a produzirem coisas uns para os outros. Tudo contido no grupinho. Todos preocupados com a sua imagem. Mais virados para o faz de conta do que para a acção sobre a realidade. Tenho dito muitas vezes que esta cultura do parecer, do dizer que se pensa fazer em vez de fazer. Do planear sem nunca concretizar. Do viver das aparências. Do infindável estudar dos problemas e do palrar cansativamente deles, é uma característica aprendida nas nossas escolas básicas e secundárias e aperfeiçoada no nosso ensino superior.

Tanto nós, quando fomos alunos, como os nossos actuais alunos, seja em que grau de ensino for, são chamados a exercícios sem qualquer aplicação prática. É o que chamamos trabalhos para o professor ver. Quando muito trabalha-se para mostrar habilidades aos colegas de turma. O produto do trabalho morre ali. Morre no momento em que é apreciado e classificado pelo professor, criticado abertamente ou à socapa pelos colegas. Mais tarde, na vida profissional, a coisa continua igual. Não se trabalha para aplicar mas sim para mostrar que se é inteligente. Que se tem ideias muito criativas. Que se é imaginativo, original. Em muitos casos que se sabe apresentar bem o que se copiou ou traduziu dos outros.

O "Manifesto para a educação da república", aparecido a público e endeusado pela comunicação social em Fevereiro, entra nesta linha do faz de conta e da necessidade de os autores mostrarem a sua indignação perante os seus semelhantes. Estes não são o povo português, ou, para usar a linguagem deles, os populares. Semelhantes são os intelectuais, as elites da República, ou melhor, os que frequentando os mesmos sítios que eles frequentam e tendo seguido o mesmo percurso que eles seguiram, pensam como eles pensam. Por isso, o apelo dos subscritores do manifesto não é para que os portugueses discutam a educação que têm e a que querem ter mas para que as elites acordem para o seu papel de elites ou, dito de outro modo, assumam a sua condição de pastores do rebanho nacional.

Dizem os autores do manifesto: "é preciso mobilizar as elites, recorrendo aos portugueses formados em contextos educativos de maior exigência intelectual e profissional, que estarão certamente dispostos e motivados para dar o seu contributo ao esforço decisivo que pode tornar Portugal uma comunidade informada, qualificada e empreendedora". Assim se apela às "elites", sobretudo às formadas no estrangeiro - presume-se que nos EUA e Inglaterra - que assumam a sua missão patriótica de pastores do rebanho nacional e o pastoreiem no sentido de o conduzir ao bom caminho. Que caminho é este? Não o dizem no manifesto, mas adivinhamos.

No manifesto não dizem o que querem fazer a não ser um vago anúncio de uma comunidade informada, qualificada e empreendedora que, julgam, se atingirá através do sacrifício que é necessário que a elite decida de uma vez por todas impor aos populares. Já chega de sentimentos de igualdade. Já chega de sonhos de prazer. É tempo de assumir que o sonho maior do bom povo português deve ser o de se contentar em viver com um salário de sessenta contos por mês ganho com suor e lágrimas num trabalho porfiado e responsável para bem da pátria lusitana e da comunidade internacional a que honradamente havemos de pertencer.

Não sei se rir se resmungar face ao conteúdo global deste "manifesto para a educação da república". Não lhe dar importância e sair do seu caminho parece ser a melhor opção. O que não quer dizer que a questão educativa em Portugal não tenha de continuar a ser profunda e seriamente discutida. Mas isso é outra coisa. E é nessa outra coisa que este jornal participa já lá vão mais de dez anos.

Faz agora dez anos publiquei um "manifesto a favor da reinvenção do sistema educativo". Ninguém deu por ele. Não sei se por não ter conteúdo que valesse a pena pensar, se por não estarem na moda os manifestos ou mais simplesmente por eu ser apenas um popular.

Mas os fundamentos que me levaram a escrever tal manifesto parecem estarem agora mais actuais. Finalmente é agora maior o número dos que reconhecem que a sociedade mudou mesmo e que exige novas respostas educativas. Que a produção de conhecimento, quer na forma quer no ritmo como se cria, já não é o que era. Que o Estado Moderno está moribundo e que é necessário recriar o Estado e portanto os sistemas que o enformam, entre eles o educativo.

Aos desafios que a actual sociedade nos coloca não se responde com mais uma ou duas reformas e menos ainda com um congresso com ou sem patrocínio presidencial. Não se lhe responde com propostas idiotas de regresso ao modelo elitista e autoritário que perdeu o rumo e o sentido há mais de meio século. Também não se lhe responde afirmando ridiculamente o primado de três disciplinas salvadoras ou com mais uma proposta de um outro pacto educativo. Nem tão pouco com mais protestos burocráticos e ruído à superfície ou com exigências vazias traduzidas no slogan "educação de qualidade" ou ainda de "mais verbas para a educação".

O que agora é indispensável é rever e compreender os fundamentos e finalidades educativas da escola. Pensemo-lo tendo em conta o contexto presente em que vivemos e as perspectivas de futuro que se nos afiguram. Aceitemos a indispensabilidade de reinventar o sistema educacional e o melhor modo de o fazer é trabalhar uma nova Lei de Bases do Sistema Educativo. Uma nova Lei que responda às novas finalidades educativas que é preciso traçar a partir dos projectos de sociedade que transportamos. Projectos que na nossa sociedade, além de diversos, sabemos serem contraditórios e que por isso exigem discussão, confronto, debate, participação democrática. Empenhemo-nos nisso com o pensamento nos "populares" e não nas elites. Estas têm sempre o presente e o futuro assegurados.
Nota:
Quando acabei de ler o manifesto para a educação da república escrevi o seguinte: "afinal a montanha não pariu um rato mas uma mera barata tonta americana". Lembro que estas baratas tontas americanas são gordas, lustrosas, voam às cegas e acabam sempre por se emaranhar nos nossos cabelos ou por se nos meterem no nariz, na boca ou nos ouvidos. Se não as pudermos evitar, usemos abundantes ratoeiras.

  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 110
Ano 11, Março 2002

Autoria:

José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.
José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.

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