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Entrevista a Fernando Miguel Bernardes

Fernando Miguel Bernardes nasceu em Gândara dos Olivais - Leiria. Aí realizou os primeiros estudos. Fez os preparatórios de engenharia na Universidade de Coimbra mas foi na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa onde se veio a formar, em 1970, como engenheiro geógrafo. Licenciou-se posteriormente em Matemática, "coisa de que sempre gostei", confessa. Fez um curso de pós-graduação em Cálculo Científico como bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian (1971-74). Foi professor do ensino secundário particular e professor do ensino superior privado; trabalhou em várias empresas (durante 12 anos na Lisnave). Sofreu várias prisões antes do 25 de Abril (Aljube, Caxias, Coimbra, Porto) e foi julgado e condenado politicamente nos Tribunais Plenários de Lisboa e do Porto. Foi director do Departamento de Acção Sociocultural no pelouro da Cultura da Câmara Municipal de Almada, naturalmente depois de 1974.
Membro da Direcção da Associação Portuguesa de Escritores desde 1994, faz parte da redacção da revista O Escritor da APE. É sócio efectivo da Sociedade de Geografia de Lisboa.
Prémios: Menção Honrosa do Prémio Rosa Damasceno, [1947?] Santarém, no qual Soeiro Pereira Gomes obteve o 1º prémio. Distinção pelo Júri do Prémio Almeida Garrett de Poesia, 1957, Porto. Menção Honrosa do Júri dos Prémios Calouste Gulbenkian de Literatura para Crianças (Revelação), 1982.
Casado. Tem uma filha, Júlia Miguel (a quem dedicou o livro Uma Estrela Na Mão), a viver e estudar presentemente nos EUA, onde casou e lhe deu uma neta.
Visita com regularidade as escolas; aí estão os seus principais leitores: "Para jovens escrevo."

Dedica o romance Docas Secas a Adérito, Seissa, Bento e Fagundes... "personagens que (re)criei na ficção deste livro". Há aqui uma ligação muito próxima com a realidade.

É. Parte das Docas Secas passa-se antes do 25 de Abril e conta a história de quatro jovens contestatários. Fala da vida de cada um deles (um é alentejano, outro algarvio, um da Beira Interior e outro da Beira Litoral) e do modo como depois se vão encontrar todos, por acaso, na Cintura Industrial de Lisboa, em Setúbal ou em Lisboa. Uns vêm trabalhar para o Metro, outros para a construção da ponte Salazar, outros ainda para a Lisnave (onde chegaram a trabalhar 10 mil pessoas, entre operários, técnicos superiores e funcionários). As duas primeiras partes retratam a resistência da juventude ao fascismo que foi maior do que se pensa. Eu estive preso com muitos jovens, e não só, do Alentejo, do Algarve, do Porto, de Gaia, de Famalicão, do Ribatejo e das Beiras, onde houve também uma resistência muito grande... E encontrei os arquétipos desses jovens resistentes, alguns foram reais...

O enfoque político é muito notório na sua obra...

Sim. Muitas vezes acusam-me disso e eu tenho dificuldade em fugir, sinceramente tenho dificuldade em fingir... Docas Secas e mesmo outros romances têm uma intervenção política... Eu apostei que ia escrever um romance sobre Santo Agostinho e as suas mulheres para mostrar a mim mesmo que também sou capaz de escrever sem política... (risos). Mas os meus poemas não andam por aí, e então os das crianças muito menos... Os amigos dizem-me que a vida não é só uma questão política... Efectivamente a vida não é só política... A verdade é que, como dizia o cantor brasileiro: "Para que não digam que não falo de flores, vou cantar sobre flores..."; mas as questões sociais estavam junto das flores que ele cantava...

A sua vivência alimenta a obra ficcional?

Há escritores que conseguem ficcionar tudo, do princípio ao fim, e nada tem a ver com a vida deles. Eu não sou assim. A realidade alimenta muito a minha ficção. Não me distancio muito. Uma vez perguntaram-me se eu estava de acordo com a ideia de que se escreve porque se escreve como se ama porque se ama. Estou completamente de acordo. O que eu escrevo vem, de certeza, eivado da minha vida. Para mim era extremamente difícil "viver" num mundo totalmente imaginado.

Os seus poemas para crianças falam-nos dos animais (gaivota, cavalo, cuco, perdiz, melharuco, coelho, pirilampos), das estrelas, do mar, do sol, das plantas,... A Natureza tem aí uma presença forte.

Eu tenho uma poesia muito apelativa para as crianças. Sou capaz de ser um dos escritores da literatura infanto-juvenil portugueses que têm mais contacto com crianças. Um poeta não deixa assim com muita facilidade de ser criança... A minha vivência de meninice e de adolescência foi no campo, em Gândara dos Olivais, encostado ao rio Lis, entre Leiria, Amor, Monte-Real. Estes temas das aves, dos rios, da água a correr, do encontro dos rios pequenos que depois dão no rio grande e mostram que a união faz a força... Esta vivência influencia muito a minha escrita para crianças. Vou muitas vezes às escolas dos vários pontos do país para conversar de tudo isto com elas.

Não prescinde desse contacto regular com as crianças?

É um contacto que me dá prazer e que me dá coragem para continuar a escrever para crianças... Geralmente só vou às escolas depois das professoras terem trabalhado com elas os meus livros. Às vezes encontro surpresas muito grandes. Um dia encontrei uma escola que tinha feito um bailado lindíssimo sobre a Menina da Trança que Dança (1985). Outra vez, no meio da conversa com as crianças, entra por ali dentro um puto com uma bicicleta e eu fiquei um pouco abespinhado e perguntei à professora: "Então como é isto?" O puto poisa a bicicleta e recita o meu poema: "A minha bicicleta/ só tem dois pedais/ mas se monto nela/ não tem dois, tem mais!..." e vem por aí fora...

Grande parte da sua produção, no campo da poesia, tem as crianças e os jovens como principais destinatários. Mas são poucos os que fazem poesia para um público infantil?

Em Portugal há poucos escritores de literatura infanto-juvenil e desses, talvez uns 80%, só escrevem prosa, poucos escrevem poesia. Eu, pelo contrário, tenho mais livros de poesia para crianças do que de contos. Apercebi-me que para o convívio imediato entre as crianças, os pais, e as professoras, um poema consegue, num espaço mais curto, dizer muitas coisas. Para se dizer o mesmo em prosa demora-se mais tempo de leitura (mas isto não quer dizer que as crianças não gostem de contos). No espaço de tempo de um conto (que levará 15 ou 20 minutos a conversar), já abordámos 2 ou 3 poemas e variou-se imenso, em fauna e em flora de um sítio, por exemplo, ou simplesmente em jogos de palavras. O poema permite uma vivacidade muito maior.

Nos seus textos, poesia e ciência entrecruzam-se...

Eu penso que a poesia, a matemática e a música são três factores que não se podem desligar uns dos outros. Não pode haver poesia sem música nem música sem poesia e a matemática não existia se não fossem os poetas. Creio que o facto de ter crescido nos campos do Lis me proporcionou uma aprendizagem muito grande da Natureza, da sua envolvência, mas também da luta dos homens e das mulheres: assisti a despiques terríveis por causa de um bocadinho de terra, pessoas a matarem-se. Problemas e lutas sociais, e o Estado ou ficava de fora ou reprimia na maior parte dos casos. Toda essa vivência e depois a minha formação em engenheiro geógrafo e em matemática explicarão esse entrosamento.

Sendo uma pessoa que privilegia bastante os colectivos, acompanhou de perto o movimento de escritores conhecido por neo-realismo ou nunca por lá andou?

É engraçado, eu tive bastantes amigos do neo-realismo e era frequentador da Vértice, quando fui para Coimbra. O Joaquim Namorado era extremamente meu amigo, o Egídio Namorado também, assim como outros intelectuais. Mas não me parece que os meus livros tenham muito do neo-realismo. Alguns críticos às vezes falam nisso, mas não sei...

É uma atitude consciente da sua parte...

Não, não é. É uma atitude mais aberta a vivências múltiplas. O Urbano Tavares Rodrigues uma vez no Museu do Neo-realismo em Vila Franca de Xira, disse mais ou menos isto: "Leiam um livro chamado Docas Secas e vão ver que o neo-realismo ainda anda por aqui em Portugal."

Não se julgava aí inserido?

Realmente não penso nisso. Penso no neo-realismo como os meus amigos e eu estava muito de acordo com o que eles escreviam. Hoje alguns riem-se... Ontem estava um artigo, não sei onde, em que um crítico fala num tom um pouco depreciativo daquilo que se dizia os "amanhãs que cantam". Eu e os neo-realistas levávamos aquilo a sério. Efectivamente, para nós os amanhãs cantariam, porque estávamos convencidos que estávamos a construir um mundo totalmente diferente; e mais, estávamos convencidos que era na nossa geração que eles vinham. Depois levámos muitos baldes de água fria. Começámo-nos a aperceber de que aqueles países que deviam interpretar na prática o neo-realismo, que na prática da vida era o marxismo-leninismo, que no nosso entender iriam construir os primeiros "amanhãs que cantam", não o conseguiam fazer. Eram homens muito limitados ainda, que utilizavam métodos ilícitos para conseguir fazer avançar o processo, ou para satisfazer algumas vezes os seus interesses pessoais... e acabaram por dar no Estalinismo e noutras coisas... Resultado: os nossos "amanhãs que cantam" - em parte por causa desses maus intérpretes, sublinho "em parte" - atrasaram-se anos e não sei se décadas, ou, quem sabe, um século.

Era uma literatura social muito empenhada na mudança.

Hoje a literatura não está muito virada para aí. A minha está. Mas eu e outros do neo-realismo, acreditávamos sinceramente que no nosso tempo os "amanhãs que cantam" chegariam. O Mário Sacramento, um dos intelectuais neo-realistas, estava de tal maneira convencido que essa era chegaria no nosso tempo que fez um testamento em que algumas das palavras dele são para os amigos: "Façam a vida melhor, ouviram? Não me obriguem a voltar cá!" Isto foi escrito por ele pouco antes de morrer. Ora se não me façam cá voltar é porque seria em breve ou ele teria de cá voltar para dar ainda um empurrão...

Não acha que no ensino primário a chamada literatura infanto-juvenil "expulsou" aquela literatura mais clássica, mais tradicional.

Eu penso que as estruturas dos sindicatos de professores deviam fazer pressão para que esta literatura infanto-juvenil entrasse nos sítios mais recônditos - não podemos pensar só no Grande Porto e na Grande Lisboa. O Ministério da Educação não paga livros dos escritores portugueses para as escolas primárias. Algumas Câmaras Municipais dão uma pequeníssima verba para as escolas adquirirem alguns livros. Eu conheço escolas em Lisboa, e no geral é assim, que eu bem vejo, cujas bibliotecas são uma tristeza. As professoras dizem que os subsídios não chegam para comprar livros. Mas mesmo que não houvesse um subsídio específico para comprar livros, o ME deveria fornecer os próprios livros às escolas primárias. Pelo menos um de cada autor. Mas como é que a literatura infanto-juvenil é de carácter obrigatório e depois não se dão os meios para que efectivamente o seja?

A colaboração entre escritores e professores é ainda muito pontual...

Eu já a considero razoavelmente positiva e podia ser mais se a escola tivesse uma pequena verba para pagar ao escritor que lá vai. O escritor vai muitas vezes à escola em trabalho voluntário. Há escritores que não vão. Eu, se a escola não tem subsídio da Junta de Freguesia, nem da Câmara, nem do Ministério da Educação, pego no carro e vou às minhas custas. Às vezes ainda ofereço um livro. Mas não fico calado, digo sempre às professoras que devem insistir com a Câmara, que têm de ter subsídios para chamar os escritores de literatura infanto-juvenil. A literatura na escola primária é um grande investimento cultural. Deveria ser levada a sério pelo ministério mas com os sindicatos a puxar por isso.

Há, no seio do sector educativo e da própria sociedade, uma discussão, que tende a tornase permanente, sobre as deficiências que a grande maioria dos nossos alunos revela no domínio da língua portuguesa. Há quem defenda que a língua se aprende lendo, fundamentalmente, os textos literários, as obras dos escritores...

Ir aprendendo Português pela prática e pela leitura dos livros é bom, mas seria bom também que os professores chamassem mais a atenção para as matérias gramaticais. A gramática portuguesa devia ser dada a par da literatura. Porque não pode haver uma literatura sem uma gramática. Eu até achava bem que nas escolas portuguesas se estudasse o Latim!


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 109
Ano 10, Fevereiro 2002

Autoria:

Fernando Miguel Bernardes
Escritor
Luís Souta
Instituto Politécnico de Setúbal
Fernando Miguel Bernardes
Escritor
Luís Souta
Instituto Politécnico de Setúbal

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