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As culturas mortíferas da exclusão

Muitos se lembrarão daquela fábula irónica das "Cartas Persas", de Montesquieu, em que o famoso filósofo francês votado às ciências sociais imagina, entre 1712 e 1720, a visita de dois persas à França de Luís XV, pondo em confronto duas civilizações e em causa a cultura "superior" dos franceses e a sua displicência para com as "diferenças" da Humanidade.
Num estudo sobre a obra de Claude Lévi-Strauss (incluído na edição do livro deste, "Raça e História", publicado, em 1975, pela Editorial Presença), Jean Pouillon abre o seu ensaio com a pergunta que coloca na boca dos franceses e que, quando se pensa em multiculturalismo, se torna sacramental: "Como é que se pode ser Persa?" A ironia da pergunta traz em si a evidência da resposta: "tu éÈs outro!"
E recobrindo a tese de Strauss, o ensaísta sustenta: "A descoberta da alteridade é a descoberta de uma relação, não a de uma barreira. Pode confundir as perspectivas, mas alarga os horizontes. Se põe de novo em questão a ideia que fazemos de nós mesmos e da nossa própria cultura é precisamente porque nos faz sair do círculo restrito dos nossos semelhantes."
E prossegue adiante:
"O outro é também um homem, não na, mas apesar da sua diferença. Somos assim conduzidos a um curioso paradoxo: a humanidade é colocada fora e como que acima das culturas cuja diversidade já não sabemos bem o que significa. Se geralmente não tomamos em conta esta bizarria, é ou porque a fundamentamos, implicitamente ou não, sobre uma metafísica de origem religiosa, ou porque valorizamos, sem de tal modo nos apercebermos, a cultura a que pertencemos e que subtraimos assim à diversidade de outros sistemas culturais."
O tema remeteria, naturalmente, para outra análise, - a das culturas "superiores" e "inferiores", "modernas" e "primitivas" - mas o objectivo, agora, é outro e menos ambicioso: o respeito pelas "diferenças" culturais e o que a ausência dele ou o desconhecimento delas podem trazer de catastrófico para a Humanidade, como mais uma vez se confirma na sequência da destruição das "torres" de Nova Iorque.
Poderíamos começar pela análise dos discursos dos principais líderes intervenientes, que reciprocamente se atribuem a legitimidade de "verdadeiros" intérpretes do Bem e do Mal que emana da inspiração de Deus, atribuindo ao Outro a representação do Diabo; e acabar nos discursos dos respectivos povos que, implícita ou explicitamente, dão a resposta que corresponde àquele mesmo sentimento de exclusividade: "Vejam o que é ser muçulmano e árabe!" ou "Vejam o que é ser cristão e americano!" - enquanto apelam para uma "nova ordem mundial"...feita à sua medida.
Não há que iludir: as serpentes que foram saindo debaixo dos rochedos deslocados são filhas de duas civilizações de substrato religioso que se negam e defrontam desde que, sempre invocando a inspiração de Deus, postularam códigos morais e de comportamento dirigidos à modelação de culturas e civilizações egocêntricas, revistas e actualizadas em Sinédrios, Concílios e Tribunais conforme mudavam os tempos e as mentalidades dos fiéis. Seria preciso chegar ao século XVIII d.C. para que, numa Revolução feita por agnósticos e ateus, - a Revolução Francesa - fosse proclamada a universalidade dos princípios que vinham da inspiração recebida por Moisés, no Monte Sinai, e que a Bíblia, o Corão ou a Tora regulamentaram com ressalvas e exclusões: todos os homens são filhos de Deus, por igual, e nenhum deve fazer ao outro o que não deseja que lhe façam a si próprio.
Mas como a natureza humana não muda por decreto (um filósofo moderno defendeu que ela é resultado das condições objectivas da sociedade), as ideologias e os misticismos que determinaram as práxis dividiram a Humanidade, cada parte reivindicando o primado da Verdade e da Justiça. Assim se ergueram de novo Gog e Magog, o Presidente Bush, na América, condenou à morte o terrorista Osama Bin Laden e, no Irão, o Oman Khomeiny proferiu a mesma sentença contra o blasfemo Salman Rushdie - o primeiro, punindo um atentado contra a Vida; o segundo, contra a Fé, e ambos no cumprimento de um código moral. Em qual deles Moisés, o Primeiro Legislador, aporia o seu "imprimatur"?
Facto é que se ainda nas civilizações correspondentes se pratica, contra os "transgressores", do lado judéocristão: "Não terás com eles piedade: vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé" (Dt 19, 21), como em Israel, na Palestina ou na Irlanda (em oposição ao Mandamento transmitido por Javé-Deus a Moisés: "Não matarás"); e do lado muçulmano se preceitua: "Matai-os onde quer que vós os encontreis e expulsai-os de onde eles vos tenham expulso, porque perseguição é pior do que matar" (cap.2 vers. 192 do Corão) - parece restar, como alternativa às soluções mortíferas e ao fim de milénios de soberbas, ódios e guerras por causa de desiguais noções do Bem e do Mal, de Deus e do Diabo, que o Homem assuma e resolva, em seu próprio nome e por sua responsabilidade, os erros do orgulho e da intolerância que pertencem exclusivamente à natureza por ele mesmo produzida, "natura naturans", na certeza de que ou se salvam todos, ou se perdem todos. Foi uma rara e verdadeira prática da multiculturalidade que, no dobrar do primeiro milénio, a soberania do emirado omíada na Andaluzia congraçou muçulmanos, cristãos e judeus em torno de uma cultura humanista edificada sobre os esteios da Razão: a Ciência, a Filosofia, a Literatura e a Arte.
Porque quaisquer fundamentalismos - que são crenças excludentes e erosivas - ou se transformam em cancros, e destroem por dentro, ou em epidemias, e nunca se sabe quando e onde terminam. A história de todos os tempos (e os Livros Sagrados fornecem expressivos exemplos da corrupção do pensamento minado pela intolerância e o ódio) é pródiga no registo de paranóias do Poder e da Fé, quer se representem por Guerras Injustas, quer por Guerras Santas, chame-se-lhe Cruzada ou Jihad.
Neste contexto pareceria que só foi para experimentar (mas então não haveria um Destino) o uso do livre arbítrio da vontade humana que Deus (seja o Javé dos cristãos ou o Alá dos muçulmanos, já que ambos tudo vêem e tudo sabem) concedeu à sua criatura uma qualidade inexistente em qualquer outro ser vivo: a consciência de liberdade e o sentido de autodeterminação. Mesmo como aquele que, há alguns anos, induziu 800 americanos do "Templo dos Povos" a um "libertador" suicídio colectivo...
Pois será o grau de aproveitamento desta qualidade, graças à qual o Homem se realiza, diante da Natureza visível e concreta que é o plasma onde pode haurir a energia vital que lhe confere o privilégio de compatibilizar a memória do passado, a realidade do presente e o projecto do futuro, que há-de valorar finalmente as culturas e as civilizações, pelo resultado das que vivem e das que morrem, e provar que não é fatal nem definitiva a sentença escatológica de Plauto: "homo homini lupus".
De contrário, essa que foi a principal criatura de Deus pareceria como que condenada a viver a ilusória liberdade de caminhar sobre o fio duma navalha e a atravessar, por uma estreita ponte de corda, um enorme fosso infestado de lobos famintos - antes de alcançar o Céu. Mas um Deus assim só poderia ser criação da mente humana.

Leonel Cosme / investigador

  
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Edição:

N.º 108
Ano 10, Dezembro 2001

Autoria:

Leonel Cosme
Escritor - Jornalista, Porto
Leonel Cosme
Escritor - Jornalista, Porto

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