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Os homens e os deuses

No cenário actual de sombras que pairam sobre a consciência da humanidade, imersa no estupor do profundo golpe vibrado no coração dos Estados Unidos, no dia ll de Setembro de 2001, ouvem-se em eco, nos mais diversos tons e línguas, iguais afirmações de que, doravante, o mundo não será o mesmo - se por causa de um velho medo, se de uma nova esperança.
Inspiram-nas o horror e o pasmo provocados por um acontecimento que não tem paralelo na memória fesca de muitos povos - não de todos, pois alguns ainda sentem na carne e na alma os efeitos devastadores de um Holocausto ou de uma Hiroshima, para não falar de outros, também modernos, cujas proporções tiveram a desmedida dimensão do sofrimento das suas vítimas, mas que igualmente induziram o mundo - ou uma grande parte dele - a reflectir sobre os limites da maldade dos homens ou da ira dos deuses.
Contudo, uma simples releitura de documentos antigos diz-nos que semelhantes conjecturas terão sido feitas ao longo dos séculos com história, sempre que um acontecimento brutal, marcado pela surpresa, a violência e o horror, abalou a consciência da humanidade, obrigando-a a reflectir sobre a natureza do Homem e, para quem acredita, os desígnios do seu Criador. É o que terá ocorrido quando Javé, o Deus bíblico do Antigo Testamento, arrependido de ter criado o Homem, ordenou que um Dilúvio apagasse a sua presença da face da Terra, e mais tarde, após haver transigido que Noé e a sua família sobrevivessem à devastação para iniciarem novas gerações, supostamente isentas do mesmo ódio genésico que separou os irmãos Abel e Caim, ordenou a destruição de cidades como Sodoma, Gomorra, Jerusalém e Babilónia, "a grande", tornada "morada de demónios e prisão de todo o espírito impuro (...) porque todos os povos beberam do vinho da ira da sua prostituição, os reis da terra prostituíram-se com ela e os comerciantes da terra enriqueceram-se com o excesso do seu luxo."
Mas, transcorridos séculos sobre séculos, tendo Javé-Deus já recolhido ao Céu da sua origem, o Homem, imaginado por milhões de crentes à imagem e semelhança do seu Criador, não tinha mudado após uma continuada história de ódios, intolerâncias, perseguições e guerras, levando os profetas a visionarem que um Apocalipse assinalaria o "dies irae, dies illa", no momento do Juízo Final, em que o Demónio "foi atirado para o lago de fogo e de enxofre, onde já a besta e o falso profeta eram atormentados dia e noite pelos séculos dos séculos (...) e o mar restituiu os mortos que nele estavam, e a a morte e o Hades restituíram os mortos que neles estavam, e cada um foi julgado segundo as suas obras."
Transcorridos outros tantos séculos, sem que a ira de Deus se tivesse manifestado em acto escatológico que, no mínimo, prenunciassse o fim da história do Homem, ainda Satanás continuava "solto da cadeia a induzir em erro os povos dos quatro cantos da terra, Gog e Magog", sem que "um fogo descesse do céu de Deus e os devorasse."
Num sentimento, real ou imaginário, da ausência ou da indiferença de Deus perante o destino da sua criatura, as gerações que sucederam primeiro aos filhos de Adão (Abel e Caim) e depois aos de Noé (Sem, Cam e Jafet), disseminadas pelo mundo bíblico das terras de Nod e de Sinear, conservaram a ideia de Deus em acordo com as suas necessidades e convicções, ora misericordioso, ora justiceiro, ora implacável, acalentando umas vezes a bondade dos corações, outras vezes a fúria dos exércitos. Porque havia, afinal, mais mundos além do de Javé, e assim a ideia de Deus assumiu personificações diversas, consoante a palavra de profetas e messias que falavam em seu nome afirmando a mensagem do "deus verdadeiro" e inspirando, à volta dela, grandes religiões como o Budismo, o Cristianismo, o Hinduísmo, o Islamismo ou o Judaísmo.
Se havia um único Deus, ele não se manifestou contra a liberdade consentida aos que invocaram o seu nome para legitimarem a configuração do Bem e do Mal e, à sombra destes, a nomeação dos "fiéis" e dos "infiéis", dos "crentes" e dos "ímpios". Assim se justificaram, desde ontem, as Cruzadas e Guerras Santas e as leituras de uma Bíblia, de um Corão ou de um Tora. Assim, hoje, os povos muçulmanos se sentem filhos eleitos de Deus, seguindo o Corão, e os povos cristãos seguindo a Bíblia, todos evocando a protecção do Sagrado nos seus discursos mais profanos.
Diante desta dispersão de ideias sobre a proclamada unidade de Deus, que contudo parece rendida aos contornos de tradições, interesses e geografias tão diferentes, na sua textura, a despeito da mesma aparência, como a água dos oceanos, pensadores inconformados com a aceitação determinista da condição e destino do Homem, que se extrai da leitura duma história de sucessivos horrores e contradições, ousaram proclamar a morte de Deus e a sua substituição por um Super-Homem (Nietzsche) e que "a religião é o ópio do povo, (...) o suspiro da criatura oprimida, o sentimento de um mundo sem coração e a alma de situações sem alma, ( ...) o sol ilusório em torno do qual gira o homem enquanto não circula em torno de si próprio" (Marx).
Mas já Dostoievski, pela boca de Ivan Karamazov, personagem de um seu famoso romance, "Os Irmãos Karamazov", questionava que "se não há Deus, tudo é permitido." Coetâneo de Nietzsche e como este figurante do mundo interrogativo da segunda metade do século XIX, teria decerto dúvidas sobre se um Super-Homem, substituto de Deus para regular os destinos da humanidade, não daria lugar a uma nova religião, a um novo "ópio", com mais horrores e abominações do que qualquer religião passada, por não temer Deus nem Satã, tão-pouco um apocalíptico Juízo Final.
O que fica, pois, para além do temor à justiça dos deuses e do terror da justiça dos homens, como razão para impor uma "nova ordem", seja contra uma forma de Estado, à maneira de Saint Just ou de Bakunine, ou de Civilização, à maneira de Bin Laden, e assim resolver "o absurdo da confrontação entre o apelo humano e o silêncio irracional do mundo", nas palavras de Camus, - será a Revolta do Homem, pela "recusa de ser tratado como coisa e de ser reduzido à simples história, a afirmação de uma natureza comum a todos os homens, que escapa ao mundo da força." Já que - e ainda com Camus, em "O Homem Revoltado":"Todo o revoltado, tão-somente pelo movimento que o ergue contra o opressor, pleiteia, portanto, a favor da vida, compromete-se a lutar contra a servidão, a mentira e o terror e afirma, pelo espaço de um clarão, que estes três flagelos fazem reinar o silêncio entre os homens, obscurecem-nos uns aos outros e impedem-nos de tornar a encontrar no único valor susceptível de os salvar do niilismo, a enorme cumplicidade dos homens a braços com o seu destino."
Quer ele seja o de um Sísifo, não se deixando vencer pelo Rochedo; de um Ulisses, alcançando enfim, em Ítaca, o "descando do guerreiro"; ou de um taliban suicida, certo de que, depois da morte por honra de Alá, o aguarda o Paraíso com sessenta virgens à sua espera. Ou, naturalmente, qualquer outro destino que se inscreva na caminhada misteriosa e por isso imponderável da Humanidade.

Leonel Cosme
investigador

  
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Edição:

N.º 107
Ano 10, Novembro 2001

Autoria:

Leonel Cosme
Escritor - Jornalista, Porto
Leonel Cosme
Escritor - Jornalista, Porto

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