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Pai, estamos em guerra?

Para Bruna Pedro Dias, essa menina de quatro anos que...


1. Introdução

Pergunta que, de certeza, as crianças colocam hoje. Quer aos seus pais, quer aos seus professores, quer, ainda, aos seus amigos. Pergunta que todos nós nos colocamos. Porque não é bem claro o que está a acontecer. E, se o adulto não sabe, o que vai explicar à criança? Porque as crianças estão apavoradas com o facto de um país parecer atacar ...a não se sabe bem quem, se país, pessoa, bandidos...

A palavra terror tem sido a mais usada nestes últimos dias. Começou por se dizer "America at war" para passar a ser "America aginst terrorism". E lá vamos ficando, os adultos perdidos entre a imensa quantidade de informação que nos lançam os media de informação. Especialmente a televisão que incessantemente reproduz no seu ecrã duas torres de prédios de uma grande imensidão, que parecem arranha-céus a escarafuncharem a terra. E mete medo. Duas bolas de fogo a entrarpor uma janela, corpos a caírem, pelo ar em procura...da vida. Vida que foge com eles ao saltarem dessa janela ardente! Janela ardente, normalmente feita para entrar luz e ar. As crianças sofrem e perguntam. Os media não perdoam e envilecem os espectadores com imagens e palavras que mal entendemos: é guerra, é terror? Guerra, contra quem? Terror? O que sinto eu? Ou, o da criança? Ao saber? Ao desconhecido? Ao presente? Ou ao imprevisível futuro?


2. Terror

A morte tem sido uma desconhecida para os mais novos. Sabem que existe, mas não é com eles. A morte é a dos velhos, seja qual for a idade que esse ser possa ter. Velho é o ser que se vê maior do que eu me vejo. É natural que a morte ande ao pé deles, já não têm dentes nem têm forças; não trabalham, esquecem, querem andar e caiem, querem dizer o meu nome e acabam por se lembrar do do meu irmão mais novo. Os velhos são para estarem doentes e morrerem. Mas, às tantas, estes senhores e senhoras que têm filhos, pais, avós e amigos como têm o pai e a mãe, andam a desaparecer por causas que a criança não entende. Mal é ligada a televisão, o arranha-céu torna a aparecer com aviões a entrarem pela janela das janelas de aço. A Bruna pergunta, o que é? E os pais dizem, um acidente. Mas, como, perguntar-se à a Bruna, assim, todos os dias? Quantos caíram hoje, quantos meia hora mais tarde, quanto nas noticias da noite, quantos nas do dia de ontem e no de hoje, e no que será amanhã?

O terror é o da criança. Os adultos não podem deixar de estar horas a fio a olharem para um facto nunca antes visto: um ataque televisivo, quase como uma cowboiada. Apenas que nunca mais acaba. A criança brinca aos cowboys e mata aos amigos, que tornam a viver a seguir, para o jantar ou o lanche. Esta cowboiada é para escarafunchar a terra e retirar daí imensas pessoas - ouve a criança dizer - que foram mortas por terroristas. Talvez, como o amigo de em frente que anda sempre a bater nos braços ou a tirar pedras, para o amigo correr mais rápido e ficar como herói perante os amigos que riem, enquanto as pedras são atiradas. Riem, por saberem que, ao fim, hoje é a pedrada ao José, amanhã ao João, ao Domingo para ninguém. E esses dias que a brincadeira é sem parar, a rir e brincar. Esses dias que acabaram, ao que parece, dentro de casa, os pais a verem mais uma vez os arranha-céus a escarafuncharem a terra. Não deve ser assim tão difícil o que se anda a passar: há adultos a mais a falarem sempre nessa nova palavra, retaliação. Ao que se parece, há um grupo de homens maus que devem bater nos edifícios e devem ser queimados ou assassinados. Tanto avião e barco que anda por perto das pessoas que se atiram para os arranha-céus...em avião. Dizem que é o terror. Será como esse pequeno que vai falando, sente, que o terror é? Será assim tão mau, que até o Papa da nossa Igreja vai visitá-los para os convencer a serem bons? Esse velhinho todo curvado no meio dos barcos e dos aviões? De quê o terror?


3. Os maus

Os que usam toucas na cabeça. Uma cabeça suja, de certeza, para a terem de a ocultar. Cheios de barbas imensas que servem até para se taparem o corpo por causa de não terem roupas para se vestirem. Maus, porque toda a família vai a Igreja a rezar por eles, para serem melhores, mais calmos, para não matarem as pessoas. O pai diz que matam as pessoas por não acreditarem no que eles acreditam, que há um deus com um nome mágico que deve ficar muito longe, a lá, e nunca cá. O nosso está em todas as partes. Está sempre cá, connosco, para nos ajudar e nos proteger. O deles deve ficar muito distante e precisam de pessoas que os empurrem a procurá-lo. Deve ser por isso que andam todos a voar ou a ir de barco, para a terra deles. O pai diz que é uma guerra. Mas, dizem a rádio, os jornais, a televisão, que é uma guerra santa. Porque os senhores de chapéu branco não querem ser atacados, era uma ofensa ao seu Deus e eles não permitem que lhe atirem pedras, especialmente, balas. O que é que terá esse Deus que vive a ser atacado? Falam da dita guerra do Golfo, quando os arranha-céus perto do mar do Iraque, escarafunchavam a terra. Dizem que havia petróleo para ser vendido e que nossos amigos que nos defendem deles, não os deixavam vender ao preço que eles queriam. Será como quando o João me quer dar os seus rebuçados a 50 escudos e na loja os vendem a 30? Diz o pai que é pura economia e que não é para nós entendermos. É para ser debatido entre os bons e os maus. Apenas que eu já não sei quem é bom e quem é mau. Se os arranha-céus do Golfo foram abatidos, porque é mau abater os dos Estados Unidos?

Diz o pai que é para nos defendermos de perdermos a liberdade. Mas, o professor de História andou a explicar que faz já anos que nós andamos no dito Oriente ou Golfo para resgatar o Sepulcro de Nosso Senhor. Devem ser muito maus os que o escondiam. Foi preciso puni-los e tirar os seus bens para não mexerem mais e entregarem o lenço do Senhor. Eram as Cruzadas, diz o Professor. Diz que muitos santos morreram por salvar a memória do Nosso Senhor. Desse Deus de cá e no de a lá, distante, longínquo, incapaz de entender o que era necessário para nós sobrevivermos: a ideia santa de ser nosso o lugar do filho de Deus. Embora um Francisco italiano ficasse zangado e organizasse uma equipa de pessoas para não irem a guerra do Oriente. E andaram a pé e descalços. Eu não entendo, o pai também não. E, se o pai não sabe, quem me vai explicar? Apenas os vejo chorarem pelos mortos das bolas de fogos das quais fujo quando começa o noticiário.


4. A chave perdida

Alice Miller foi capaz de explicar este terror da criança, que apenas posso esboçar a seguir ao meu inquérito a várias delas. Miller diz que Abraham leva o seu filho para o degolar perante Deus ou Jawhvé, como era denominado. E que é apenas quando Yawhvé lhe diz "Pára, vejo que sabes obedecer", o pai não degola Isaac, o seu filho adorado. E diz Miller, ao interpretar a pintura que fez Rembrandt, que "Aí jaz o filho, um adulto em plena posse das suas faculdades , calmamente à espera que o pai o mate." (página 145) E porquê o filho aceita? Porque acredita que o pai faz o que deve fazer e que tudo o que seja feito em contrário, só era mau para o seu povo.

Defesa que faz Alice Miller? Não, interpretação psicanalista do acontecer de outras culturas na época de um mundo não globalizado que não permitia intrujar a vida de outros, nem atacar, nem receber retaliação que ia ser retaliada. Um jidah- uma guerra santa de ambas as partes em nome da civilização. Miller deve estar a pensar quantos os mortos do Oriente desde as Cruzadas até agora.

Qual o pai que pode ser Miller, qual Bruna pode ter uma mãe Alice?

É tudo o que consigo escrever nestes dias de profunda tristeza, quando vejo cair corpos por todos os sítios, ameaças não entendidas pela população, procura de refúgio nas igrejas, mesquitas, ideias, mais além. É quando penso, quem me dera que houvesse um mais além para poder descansar, porque esta vida, se continua assim, está perdida. Mas, a seguir, penso, não, é preciso alertar os adultos que as suas crianças têm terror e que eles não sabem explicar, nem de teocracias, nem de constituições ao pé dos livros sagrados ou de governos a invocar uma ética que foi criada de forma natural, por um Deus que é de todos.

O leitor é quem deve saber que o terror está na criança. Tenha ponderação.

Raúl Iturra
ISCTE
Lisboa

  
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Edição:

N.º 106
Ano 10, Outubro 2001

Autoria:

Raúl Iturra
Instituto Superior das Ciências do Trabalho e da Empresa, Lisboa
Raúl Iturra
Instituto Superior das Ciências do Trabalho e da Empresa, Lisboa

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