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O que é que se aprende nas nossas escolas?

Confesso sem rodeios que os dois programas que quotidianamente pretendem enriquecer o quotidiano dos portugueses através de respostas a perguntas de cultura geral me provocam um vicioso fascínio de que me não consigo libertar.

(...) Como se sabe, começa-se sempre por perguntas rasteirinhas, daquelas em que as alternativas são tão desconchavadas que só um extraterrestre não conseguiria responder. No programa a que me refiro, a pergunta inicial era a da nacionalidade do pintor Miguel Ângelo.
Jamais esquecerei o rosto da candidata, absolutamente em pânico, como se o chão se tivesse aos seus pés com esta tão inesperada e inacessível pergunta. (...).
Maria Elisa, que estava em dia de generosidade, falou na Capela Sistina, em Roma, e aí a candidata teve um lampejo: se em Roma, sê romano, um pintor que pinta em Roma deve ser italiano. Comovedora era a alegria que lhe banhou o rosto quando se deu conta de que este acrobático raciocínio estava certo.
Seguiu-se a capital do Hawai, e aí, evocando as danças floridas das indígenas, a candidata respondeu que pela música devia ser Honolulu, (...).
Os obstáculos sucederam-se: foi saber o que era um diapasão (que a candidata supunha ser um instrumento de sopro), ou o que era uma pintura rupreste (pergunta ansiosa: "Não deve ter a ver com o Renascimento, pois não ?"). Saiu com 900 contos.
O que sinceramente me espanta é como é que pessoas que não sabem as coisas mais elementares se dispõem a ir um programa de cultura geral. Só há uma resposta: não há pior ignorância do que a ignorância que ignora aquilo que ignora. Mas a verdade é que até fez bem: não foi recompensada com 900 contos ?
Disto, deste panorama desolador, temos de reconhecer que todos nós temos culpa, e ninguém tem culpa. No entanto, uma coisa se mostra nestes programas, e a pergunta é inevitável: o que é que se aprende nas nossas escolas ?

(Eduardo Prado Coelho, A incultura geral, Público, 4.01.01)


Poderemos responsabilizar a escola, como o faz Eduardo Prado Coelho, por todas as manifestações de ignorância dos portugueses ? Talvez até desse jeito, mesmo que de um equívoco se trate.

Por nós, somos bem mais modestos relativamente ao que exigimos e esperamos da Escola. Bastar-no-ia que as crianças não tivessem de aprender a ler através de frases imbecis, do tipo o Jaime beija a jibóia ou a Lili papa a lua. Do mesmo modo que já nos sentiríamos satisfeitos que os manuais escolares não fossem o único artefacto cultural com que os alunos têm oportunidade de contactar nas escolas. Aplaudiríamos, igualmente, todos os esforços que não reduzissem a avaliação apenas à sua dimensão hierarquizadora e sentir-nos-íamos profundamente aliviados se os trabalhos de investigação dos nossos jovens não dependessem, apenas, da biblioteca particular e do acompanhamento dos pais que o podem fazer. Agradar-nos-ia descobrir que os resultados escolares dos alunos são cada vez menos influenciados pelo peso da indústria das explicações, assim como apreciaríamos que se deixasse de identificar rigor académico com percentagem de reprovações. Quanto mais não seja porque o conceito de exigência não pode ser um atributo aplicável, apenas, aos alunos, circunscrito a uma etapa específica da vida escolar e utilizado para iludir, demasiadas vezes, a discussão sobre a pertinência e os sentidos daquilo que se ensina e se aprende nas nossas escolas.

Mas mesmo assim, mesmo que consigamos ter uma educação escolar de melhor qualidade, não sabemos se algum dia poderemos ser poupados à ousada ignorância dos concorrentes de todas as "Febre do Dinheiro" do mundo. É um facto que a escola pode ter aqui a sua própria quota parte de responsabilidades, como é um facto também que as suas costas continuam a ser demasiado largas para arcar com as responsabilidades que outros também deveriam ser capazes de assumir.

O que é se deveria aprender nas nossas escolas?

A pergunta é tão útil quanto é difícil estabelecer um consenso sobre as respostas disponíveis. A discussão a propósito dos Lusíadas permanece na nossa memória como um exemplo da desvalorização a que, com excepção de algumas vozes mais avisadas, foi votada a questão da utilização formativa da obra-prima de Camões. A reflexão a propósito dos resultados negativos em Matemática nos exames do Ensino Secundário expressa bem a leviandade de algumas das opiniões emitidas, a ingenuidade epistemológica de alguns dos especialistas envolvidos e o aproveitamento desses resultados para confirmar a ideia que na velha escola é que se ensinava e aprendia.

José Manuel Fernandes num dos editoriais do "Público", diagnosticou que o país sofria de inumeracia, porque, na sua opinião, se estaria a desvalorizar, hoje, o ensino do cálculo e da tabuada, nos primeiros anos de escolaridade, embora o relatório decorrente da análise das provas de avaliação aferida relativas ao 4º ano de escolaridade, ao dispor de toda a gente, conclua que é no domínio do raciocínio e da resolução de problemas não rotineiros, bem como no domínio das questões geométricas e das capacidades ligadas à visualização e ao estudo da forma e espaço, e não tanto nos domínios dos números, do cálculo e dos procedimentos matemáticos, que se situam os aspectos mais vulneráveis da aprendizagem da Matemática nos tais primeiros anos de escolaridade.

Carlos Menezes, num artigo bem redigido e interessante que o "Público" divulgou ( 26.08.01), considerava que "o erro está em se pretender ensinar a fazer (investigação em) matemática, em vez de se ensinar Matemática", já que para este professor universitário não é fácil fazer (investigação em) Matemática, "nem está ao alcance de todos. É preciso, entre outras coisas, vocação, grande competência técnica e científica, muitos anos de estudo, capacidade intelectual acima da média". Ou seja, a solução estaria nas mãos dos professores, no momento em que estes (quantos ?) deixassem de fingir que ensinavam a fazer investigação e passassem a ocupar, antes, o seu tempo a ensinar a Matemática que consta dos programas. Lemos isto e lembrámo-
-nos obrigatoriamente do Pascal e dos seus alunos, os quais, diariamente numa escola do 1º Ciclo do Ensino Básico, só se interessam, hoje, pela Matemática e conseguem aprender Matemática porque discutem, problematizam, conjecturam, erram, corrigem os erros, tentam definir soluções menos onerosas, desistem, insistem e acedem com o apoio e o saber do seu professor ao léxico, à sintaxe e à gramática específica que configuram o saber e os procedimentos matemáticos. Lemos isto e apetece-nos divulgar o e-mail da turma, através do qual talvez se possa aceder às situações problemáticas que orientam o trabalho daqueles meninos e daquelas meninas, autênticos investigadores que, ao que parece, não o poderiam ser, sob pena de não terem tempo para aprenderem a Matemática que, afinal, estão a aprender apenas porque também a estão a investigar. Turma.do.pascal@clix.pt. para quem estiver interessado.

Acabamos de reler o artigo e sabemos que a resposta para a questão que o inaugura não passa pela reabilitação da escola do passado, embora seja cada vez mais difícil, doloroso e complexo discutir uma escola que, no presente, se afirme como um espaço culturalmente significativo para todos aqueles que a percorrem e nela são recebidos.

Ariana Cosme
Rui Trindade
Universidade do Porto

  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 106
Ano 10, Outubro 2001

Autoria:

Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto
Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto

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