Página  >  Edições  >  N.º 106  >  Mundo

Mundo

Democracia


Uma democracia não está segura se o povo permitir o crescimento de um poder privado até ao ponto em que se converta em mais potente que o próprio Estado democrático. Em essência, isso é o fascismo.

Franklin D. Roosevelt


Um choque de culturas

O dramatismo que ontem (11.09) ofereciam os televisores convertia as películas norte-americanas de ciência-ficção patrioteira, tipo «O Dia da Independência» (essa ridícula adaptação de a Guerra dos Mundos, de H.G. Wells), em patética fantasmagoria de papelão. Pois agora não se trata de nenhuma fantasia tão pueril como heróica, mas sim de terror puro e duro, só que há escala planetária. Agora os agressores não são alienígenas desalmados, mas apenas nossos semelhantes, cidadãos ainda que adversários, que convivem connosco partilhando o mesmo planeta. E agora não há heróis cinematográficos que nos possam salvar, nem a pompa majestática da Casa Branca para nos levantar a moral recuperando a dignidade, mas apenas um caos absurdo, digno da caneta de Shakespeare: um conto mediático narrado por um idiota, cheio de ruído e de fúria, que carece por completo de significado.

Enrique Gil Calvo
El País, 12.09.01


Três lições para os Estados Unidos

O que há que dizer primeiro sobre os ataques de terça-feira contra Nova Iorque e Washington é que demonstraram a vulnerabilidade dos Estados Unidos, como a de qualquer sociedade moderna, face a um ataque decidido e preparado inteligentemente. (...) A planificação [da defesa] sempre se baseou na suposição dos planificadores de que o inimigo atacaria de uma forma simétrica às defesas já implantadas ou que tinham previsto implantar. (...) O debate centrou-se por completo em ataques de mísseis, de armas nucleares e de agentes químicos e biológicos. (...) A lição: não são precisos métodos exóticos e alta tecnologia para produzir resultados devastadores.

Uma segunda lição: as consequências políticas e psicológicas de um acontecimento desta magnitude não se medem basicamente pela quantidade de vitimas, mas pela surpresa e o dramatismo do ataque. Enquanto o ataque permaneça anónimo, o medo e o pânico intensificam-se. [os atacantes] pretendem demonstrar que não existe nenhuma defesa real contra um ataque anónimo que faça uso do funcionamento normal de uma sociedade civil. (...)

A lição final e mais profunda destes acontecimentos e que será mais difícil de aceitar por um governo [americano], e este em particular. A única defesa verdadeira contra um ataque externo é um esforço sério, continuado e esforçado por encontrar soluções políticas para os conflitos nacionais e ideológicos que afectam os Estados Unidos.

William Pfaff
El Pais, 13.09.01


Armagedón

(...) «O Estado de bem estar» não é um erro que deve ser apagado para agilizar a especulação bolsista e a maximização do lucro, mas sim um projecto que deveria aspirar à sua vocação planetária para salvar o melhor de uma civilização humanista. E fazê-lo, precisamente, não em nome da retórica Utopia, mas de um verdadeiro realismo político. Porque não é realista supor que nada poderá viver realmente seguro num mundo em que a codicia não tem fronteiras mas a justiça encontra-as a cada passo. (...) as ONGs estão na moda e por isso devemos resignarmos a que junto às humanitárias floresçam outras inumanas: o terrorismo patrocinado por um milionário fanático é também o triunfo sinistro da sacrossanta iniciativa privada, para a qual já ninguém se atreve a propor a alternativa credível de algo defendido em comum.

Fernando Savater
El País, 13.09.01


Deus macaco

Pode olhar-se a história na perspectiva do comportamento animal. (...)

No primeiro momento da hecatombe do Pentágono e das Torres Gémeas de Nova Iorque o presidente Bush adoptou a atitude do macaco temeroso que ao sentir um estranho calor debaixo do rabo foge para um canto da jaula e ali move os olhos de um lado para o outro sem nada entender.(...) Bush estava a falar com umas crianças quando alguém lhe soprou ao ouvido o terrível acontecimento de Manhattan e (...) ficou tão nervoso que se estivesse na selva tinha subido ao último ramo da primeira árvore. Como só era o presidente dos Estados Unidos o seu instinto levou-o a esconder-se debaixo de uma grossa capa de betão. Recobrado pouco a pouco do pânico, George Bush começou a ouvir os inumeráveis conselhos, alguns contraditórios, que os macacos com mais experiência lhe davam alternadamente pelos dois ouvidos de cada vez que ele voltava a cara daqui para lá e de lá para cá sem fixar o olhar, mas de repente iniciou-se a sua transformação biológica na presença de todo o mundo. Primeiro o macaco espavorido transformou-se num babuíno irrequieto e este pouco depois foi substituindo os guinchos que lhe saiam da boca pelos socos que o King Kong dava no peito com menos motivos. O percurso da sua ira tinha seguido toda a escala animal até que o presidente dos Estados Unidos soltou umas lágrimas e muitos acreditámos ver nele apenas um homem compungido e um político decidido. Mas rapidamente saltou para lá da condição de mamífero. Em menos de uma semana aquele macaquinho assustado converteu-se num deus disposto a lançar sobre todo o planeta a sua justiça infinita, ainda que completamente às cegas. E para celebrar este milagre vão cair bombas em meio mundo à mistura com salmos de Jeremias. (...)

Manuel Vicent
El País; 23.09.01


Os outros

De facto, nestes dias de desconcerto e algidez penso muito num povo que é um modelo de civismo. Refiro-me aos saharauis. São inquestionavelmente muçulmanos , e além disso tolerantes, humanistas, progressistas. Expulsaram-nos à bomba da sua terra e sobrevivem como refugiados à decadas em condições penosissimas; mas, ao contrário do sector radical palestino, não recorreram ao terrorismo. Ocorre-me que a comunidade internacional está moralmente obrigada a atender às suas reivindicações; pois se só fazemos caso dos violentos e desdenhamos as reivindicações civilizadas, onde irá parar a credibilidade do nosso sistema? Hoje mais que nunca é necessário demonstrar que a via democrática é uma realidade, não uma panaceia.

Rosa Montero
El País, 25.09.01


Democracia e cruzadas

(...) Nesta guerra (...) as palavras pesam como pedras (...) Berlusconi falou de uma guerra entre civilizações e religiões. (...) o Ocidente moderno e civilizado, chamado a conquistar, depois de o ter feito ao mundo comunista, a outra parte, o islão atrasado e tirânico (...) mais ainda, convida a Europa a reconstruir-se sobre a sua base cristã. (...) o discurso Berlusconiano assume um tom fundamenalista e um espirito de cruzada, extremamente perigoso (...)

Paolo Garimberti
La Republica, Roma, 27.09.01


«Justiça infinita» contra a «guerra santa»

(...) o presidente George Bush quer ser o xerife justiceiro com um sonho maior que todos os anteriores chamado «justiça infinita». Trata-se da globalização da guerra e da vingança. À frente: em primeiro plano, o Sr. Osama Bin Laden, considerado como encarnação do demónio junto com o povo palestino, os árabes e islâmicos com toda a sua diversidade e, ao fundo, os negros e latinos, os que temos a cor tolerável, se nos portarmos bem. Com a «justiça infinita» dos fundamentalistas de direita norte-americana e do mundo e a «guerra santa» dos islâmicos ortodoxos, estamos de regresso ao século XII (...) à época em que em nome dos Deuses se degolava os que tinham crenças religiosas diferentes. (...) Bush e os grandes meios de comunicação preparam-nos para uma guerra prolongada contra todos os «males do mundo». Um ensaio já conhecido foi a guerra contra o Irak iniciada em 1991. (...) Não é imaginável que os governos norte-americanos entendam a vida sem inimigos de turno. Primeiro foram os índios ("El chérif y los gringos buenos contra los índios malos"), depois os negros, latinos, japoneses, coreanos, russos, chineses, guatemaltecos, cubanos, dominicanos, panamenhos, granadinos, libios, sudaneses, pelestinos, iraquianos, libaneses, sérvios, afgãos (...) Hoje, os «demónios» têm turbante (...) o senhor Bin Laden é um produto da CIA (...) será capaz o sr. Bush de reconhecer o papel dos norte-americanos no fomento do terrorismo mundial? (...)

Rodrigo Montoya
Perú, La República, 29.09.01


Palavras

Os EUA têm a arte de nos complicar a vida utilizando nomes gandiloquentes - e um pouco ridículos - às operações conduzidas sob a sua égide. Eis então Liberdade Duradoura, depois de Tempestade no Deserto e Missão Essencial. Porque não O Império Contra-ataca? (...)

Le Monde
27.09.01


A triste ONU

"A ONU, cobre-se de glória como pode. Fica melhor quando está calada. Mas mesmo assim mostra sempre a sua parcialidade e cobardia. Na guerra do Iraque, ao lado do Kuwait; na guerra da palestina, ao lado de Israel; nas adversidades «sahauris», ao lado de Marrocos. Sempre ao lado de quem tem dinheiro e força. Até dos EUA que não pagam. Como querem que acreditem nela os mais desfavorecidos? Como estranhar que provoque reacções incontroladas? O que interessa mais Ben Laden ou o seu dinheiro? E onde estará senão na Suíça? A ONU cala-se: não é de todos, só de alguns. Os bancos Suíços têm mais poder do que a África inteira. Por exemplo."

António Gala
El Mundo, 29.09.01


A Globalização total

"(...) A acção internacional que discretamente está a ter lugar teve já algumas importantes consequências que permitem registar que o mundo possa voltar a caminhar para o verdadeiro multilateralismo, há tantas décadas comprometido - quase logo após a criação da ONU, pela coexistência bipolar das duas superpotências, e, nos anos e meses mais recentes, pelo unilateralismo da única superpotência.(...)"

Maria de Lurdes Pintasilgo
Público, 01.10.01
Recolha, selecção e tradução: jps

Pedido dos textos completos para pagina@mail.telepac.pt


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 106
Ano 10, Outubro 2001

Autoria:

Redacção

Redacção

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo