Página  >  Edições  >  N.º 106  >  Oxalá

Oxalá

(In xa Allah = queira Alá = Deus queira)


Ao contrário do que se tem afirmado o mundo não mudou em 11 de Setembro. Mas mudou certamente alguma coisa. Oxalá os acontecimentos dramáticos desse dia façam o mundo ler ou reler «As Vinhas da Ira» de Steinbeck. Oxalá essa velha leitura se cruze com a deste novo drama e nos faça cuidar melhor das vinhas da ira plantadas e abandonadas um pouco por todo o planeta. Oxalá os deuses se entendam para bem da paz e dos homens.


1
- Neste fim de Setembro é ainda o tempo da retórica. O tempo de os gorilas baterem no peito para afugentar o seu medo. As grandes catástrofes e humilhações não dispensam, até exigem, alguma retórica capaz de corresponder à função catartica que a expressão verbal cumpre. Nada disto é novo, a não ser o facto de agora as vozes que ameaçam e as mãos que agitam as bandeiras do nacionalismo e do patriotismo, serem dos que sempre estiveram do lado dos vencedores. Por contraste, os que sempre foram vencidos e humilhados comportam-se com modéstia, equilíbrio e bom senso. Oxalá esta mudança de papéis contribua para nos conhecermos melhor no futuro e para nos reconhecermos mais iguais.


2 - Por nós ou contra nós. Bons contra os maus. Civilização contra a Barbárie. Pacifistas ou terroristas. Deus contra o Diabo. Império do bem contra o Império do mal. Cobardia ou guerra. Nova Era ou fim da História. Fim de século. Novo século. Fim de milénio. Novo milénio. Novas formas de guerra. Guerra duradoura. Guerra clandestina. Guerra cirúrgica contra a guerra santa. Cruzada. Réplica devastadora. Ocidente contra o Oriente. Democratas contra os loucos de Allah. «Ou estão connosco, ou estão com os terroristas» (declaração de Bush). Dito de outro modo, se não estão de acordo com o que fazemos tornam-se cúmplices dos terroristas.

Oxalá saibamos ultrapassar estas dicotomias e estes instintos guerreiros, não permitindo que a retórica ultrapasse a função de catarse, não nos levando a dar continuidade ao ciclo da violência que nos envergonha, enquanto gente civilizada, e pode dar razão aos que acusam o ocidente de brutalidade, supremacia e arrogância.


3 - A fragilidade e a vulnerabilidade dos povos ditos subdesenvolvidos ou em vias de desenvolvimento, é velha. Conhecemos os sinais: fome, doença, falta de trabalho, de habitação, de justiça, de sistemas de educação e de saúde, liberdade, democracia. Sabemos como os poderosos do mundo fingem não ver estes e outros sinais. Conhecemos a hipocrisia das medidas, a retórica até à náusea. Agora sabemos que os países ricos também são frágeis. Oxalá estas fragilidades comuns nos unam e levem a procurar cumprir a velha máxima «de cada um segundo as suas capacidades a cada um segundo as suas necessidades».


4 - «A guerra dos jogos de vídeo terminou para os norte-americanos». Frase escrita por Naomi Klein e lida no Los Angeles Times em 16 de Setembro. Esta pode ser também uma mudança com significado. Uma mudança com reflexos na indústria do cinema americano, nas transmissões televisivas, na forma como a comunicação social e os audiovisuais tratam a violência, as diferenças culturais e a vida real dos povos. Não será só o povo americano a ser afectado por esta previsível alteração da comunicação, mas admitimos que os americanos sejam os mais afectados. É que se em quase todos os países o peso dos acontecimentos depende da importância que lhes é dada pela TV, nos EUA, por razões específicas do país, a comunidade nacional existe em função da televisão que têm. Como escreveu Vicente Verdú «o ser norte-americano, a unidade nacional, a consciência comum nos Estados Unidos é um produto da qualidade da sua televisão».


5 - É provável que nenhum acontecimento anterior ao atentado de Nova Iorque tenha sido vivido por tanta gente e tão diversa, numa tão profunda perplexidade, em parte causada, pela confusão entre verdade e representação, realidade e aparência, realidade e espectáculo. É possível que tal perplexidade tenha sido tanto maior quanto maior tenha sido o envolvimento pessoal em guerras higiénicas, coloridas, sonorizadas, ritmadas, esteticamente bem conseguidas, tecnicamente perfeitas, como aconteceu na última década, por exemplo, no Iraque, Sudão, Líbia, Bósnia, Kosovo ou Sérvia. Oxalá esta mudança brusca e brutal das imagens e das palavras, ajude a humanizar os nossos comportamentos. Oxalá sirva, pelo menos, para diminuir a forma desigual como vemos não só os vivos mas também os mortos dos distintos lugares do planeta. Oxalá os doentes, os torturados, os desabrigados, os refugiados, os marginalizados, os mortos de Angola, do Congo, do Ruanda, do Sudão, da Palestina, da Colômbia, da Ásia ou de qualquer outro lugar do mundo não ocidental, tenham ficado mais próximos do Ocidente. Oxalá as crianças órfãs do crime de Nova Iorque nos ajudem a sentir e a entender melhor as crianças de África, de barriga inchada pela fome e pela doença e de olhos enormes de incompreensão e espanto, que as moscas teimam em comer.


6 - Perante a evidente falta de informação e a abundante contra-informação e propaganda, resta-nos, por agora, fazer perguntas.

Os ataques terroristas nos EUA irão empurrar-nos para uma escalada que acentue, à escala mundial, o ciclo de violência que se traduz numa série de «castigos exemplares» e «respostas suicidas»?

Iremos participar numa reflexão sobre as diferentes culturas do nosso mundo, capaz de nos ajudar a reconhecer e aprofundar o seu lado humano, e a combater as suas perversidades?

A classe política e o povo americano irão aumentar a sua informação e conhecimento sobre o que se passa fora das suas fronteiras? Esse conhecimento, permitir-lhes-á entender que o mundo não é feito a preto e branco, que não se divide em países bons e países maus, em povos civilizados e povos bárbaros, que não existe uma só civilização ou cultura (a sua), que a diversidade pode ser um bem e que a multiculturalidade é uma das mais ricas marcas da condição humana?

Oxalá o povo americano se abra mais ao mundo e, os outros povos aproveitem também para os conhecer melhor. Oxalá aumente o número dos que entendem não existir um Império do Bem nem um Império do Mal.


7 - Podemos continuar a aceitar que os EUA sejam os fiéis depositários da segurança mundial? Não será mais razoável entender que a segurança é um bem comum que importa a todos os povos assegurar? Não teremos de reinventar as organizações mundiais, que assegurando a participação democrática dos povos, cuidem da segurança de todos? Oxalá cresça o número dos que entendem que todos os povos têm o direito a dispor, em segurança, do seu presente e do seu futuro.


8 - A ameaça dos fundamentalismos religiosos e nacionalistas é mais perigosa do que a ameaça dos fundamentalismos da tecnocracia, da ciência, das leis do mercado, da economia capitalista, do neoliberalismo? Oxalá se perceba que os Estados e a democracia não são dispensáveis, e que o mundo se não pode reduzir a um imenso hipermercado global, governado por gestores de negócios coadjuvados por tecnocientistas.


9 - Poder-se-à recorrer à violência contra outros povos e países, em nome da civilização, ao mesmo tempo que se mantém e desenvolve a indústria armamentista, a produção de minas anti-pessoais, se estimula a pesquisa sobre guerra química e biológica, se recusa o acordo de Quioto, se rejeita o Tribunal Penal Internacional ou se investe na guerra das estrelas? Oxalá se perca a arrogância imperial e se entenda que os Impérios não são viáveis e se procure a igualdade de direitos e o bem comum dos países e dos povos.


10 - Poder-se-à continuar a seguir, no Médio Oriente, uma política dependente de taticismos conjunturais e de interesses económicos de fundo? Pode manter-se o apoio à política terrorista de Sharon, manter o cerco que condena à morte o povo do Iraque - e não o seu ditador - ao mesmo tempo que se apoiam as oligarquias corruptas mas amigas, como são a Arábia Saudita e outros Estados do Golfo Pérsico? Oxalá se altere esta política hipócrita para que todo o povo israelita, e não apenas parte, recupere o respeito do mundo civilizado, e se acabe com a opressão do povo palestino e com a situação que transforma jovens, que deviam ser estudantes e trabalhadores israelitas, em terroristas de Estado, e jovens, que deviam ser estudantes e trabalhadores palestinos, em terroristas suicidas.


11 - Pode a economia capitalista, no seu estádio actual, subsistir sem recorrer ao doping dos fluxos de capital vindos da economia criminosa? É possível combater as Mafias ou estas já controlam a economia mundial e o essencial do poder político? Oxalá os governos ainda disponham da capacidade e da vontade política para combater o tráfico de pessoas, de armas e as redes do roubo, da prostituição e da droga.


12 - Depois das manifestações internacionais de protesto, anteriores a Setembro, os governos dos países mais ricos do mundo já haviam decidido reunir em lugares fortificados, longe das multidões. Oxalá estes acontecimentos trágicos, tenham tido, pelo menos, a virtude de despertar a opinião pública internacional para a necessidade de mais justiça, mais democracia, mais política, maior liberdade real de tal sorte, que os poderosos de hoje não se sintam, um dia, obrigados a abandonar o planeta na esperança de encontrarem um lugar longínquo e seguro, de onde possam controlar este mundo de escravos que teimam em construir.

Oxalá (queira Alá) se esteja ainda a tempo de, solidariamente, construir um mundo culturalmente diverso, democrático, justo, livre e seguro para todos. Oxalá os deuses se ponham todos de acordo.

José Paulo Serralheiro

  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 106
Ano 10, Outubro 2001

Autoria:

José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.
José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo