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A Literatura morre na Escola?

Muitos desejariam que a literatura morresse na escola secundária. E não distingo o mesmo desejo entre uns tantos professores que não leccionam a disciplina - considerando que "indispensável" é a que eles próprios ministram e que do Português ainda retêm o sentimento do "horror" que a disciplina lhes causou na adolescência - e os milhares de alunos que, desde tempos imemoriais, foram submetidos a verdadeiros tratos de polé por serem obrigados a ler livros para eles desinteressantes e a fazer análises pré-direccionadas. Como quem fosse obrigado a ler a Bíblia e a decorar parábolas.

Este tema foi-me suscitado após a leitura de um expressivo artigo de Carlos Ceia, inserto no número anterior de "a Página", sobre uma suposta "morte anunciada" da literatura no ensino secundário, e de, na sequência do meu artigo sobre o "lusomundialismo" de Miguel Torga, incluído no mesmo número, ter-me chegado às mãos um manual de preparação para a prova de exame nacional de Português do 12º ano, em que, para fixação do "Corpus de Leitura Metódica e Obrigatória (do Programa)", se fixa para o tratamento do tema "Miguel Torga": Revolta da inocência humana contra a divindade transcendente; Máxima realização humana do divino; Apologia de um sentido terreno, instintivo; Obsessão telúrica;: Apego aos limites carnais, terrenos e a revolta espontânea contra esses limites.

E para "auxiliar", os autores do manual avocam dezanove tópicos que seriam muito úteis para uma dissertação de licenciatura ou mesmo para um candidato a mestrado, que não desdenharia recebê-los do seu "orientador" para realizar uma ambiciosa tese que teria por título, certamente, " O ôntico em Miguel Torga", e os obrigaria a ler o essencial de Baudelaire, Rimbaud, Malraux, Unamuno, Camus e Heidegger - no mínimo...

Tenho a impressão de que se Miguel Torga tivesse visto esta "preparação" para um exame de jovens de 16 ou 17 anos, sobre a sua vida e a sua obra, "auxiliada" por considerações críticas donde se exclui (pasme-se, neste momento em que tanto se fala de identidades nacionais ameaçadas pela Globalização!) a dimensão "lusíada" de um Poeta-Português "cuja sina era não caber no berço", diria algo parecido com o que escreveu no seu "Diário XVI":

"Coimbra, 8 de Fevereiro de 1991 - Cento e oitenta mil alunos fizeram a prova de acesso à Universidade debruçados sobre uma página deste Diário. Deus os tenha ajudado. Quando escrevi o texto em causa, estava longe de imaginar que ele viria a ser motivo de mortificação académica. Em Portugal, a apetência literária morre na escola. Poucos mestres se empenham em ensinar os discípulos a gostar dum autor. Que o diga Camões. Oxalá que, entre tantos jovens que me leram neste dia compulsivamente, alguns deles passem a ler-me voluntariamente, não por conta de qualquer júri ou computador, mas por real prazer, e descubram que um escritor não é dentro da pátria um inimigo público embuçado, mas uma prestável voz fraterna."

Releio estas palavras (seja-me perdoada, agora, a pessoalização) e lembro-me do tempo em que só não "odiei" "Os Lusíadas", "O Bobo" ou o "Auto da Barca do Inferno", como acontecia em geral com os meus colegas de outras turmas, porque o meu professor de Português (curiosamente bacharel em Direito), preteria a divisão das orações pela "sua" análise dos textos. Devo às suas lições estimulantes o despertar do meu imaginário e a ousadia de, aos 16 anos, ter publicado num jornal um conto "histórico" ... inspirado no "Bobo"!

Para desencorajar qualquer ilação determinista, deverei declarar que eu era um mediano aluno de 14 em Português, não tinha literatos na história genealógica nem bibliotecas na família. Mas tinha - e isso, sim, fora determinante de uma "vocação" que precisou de mil leituras para se "revelar"... - um colega mais velho "viciado em livros", que me "obrigava" a ler, nomeadamente, Ferreira de Castro, Alves Redol, Jorge Amado, Zola, Roger Martin do Gard e Vicente Blasco Ibañez, os primeiros e principais autores da minha memória literária. Os Eças, os Camilos, os Fialhos, os Aquilinos, lidos por curiosidade e gosto, esses vieram muito mais tarde, quando senti necessidade de saber como escreviam e pensavam os escritores portugueses que vinham nas selectas, em comparação com os "outros" que só lá teriam lugar muito tempo depois, ou nunca teriam.

Tudo isto para dizer que se nesse recuado tempo eu tivesse de ler e "estudar" Fernando Pessoa e Vergílio Ferreira como são perfilados no referido manual, decerto as minhas leituras destes dois autores teriam ficado por ali, mesmo que a minha eventual simpatia pelos livros ou a lusitaníssima necessidade de "parecer bem" me induzissem a adquirir as suas obras completas para expor na sala de visitas... A "Aparição" de Vergílio Ferreira só a "digeri" correctamente, dez anos após a primeira leitura, depois de ter aflorado autores como Jaspers, Lukacs, Heidegger, Camus, Malraux e Sartre - isto é, quando começava a questionar-me sobre se o Homem era um ser-em-si ou um ser-nos-outros...

Fui observando que a literatura se ama ou despreza, é dispensável ou faz falta, conforme o mundo (a casa, a escola, a sociedade) em que se vive e as pessoas (a família, os professores, os amigos) que nos rodeiam. Ou dum modo mais abrangente: conforme a Educação que nos rege e o País a que pertencemos. Do que se poderá talvez dizer, parafraseando uma asserção consabida, - mas nem sempre justa - que os povos têm a literatura que merecem. Justo seria dizer: de que sentem necessidade...

Ante uma anunciada reforma curricular, em que não será determinante, julgo eu, a displicência ou o desamor manifestados por muitos professores (de Português e de outras disciplinas) que não se esqueceram da "inutilidade" e do "martírio" com que foram obrigados a estudar os nossos "clássicos" da Língua e, entre os contemporâneos, os que foram considerados "paradigmas" da nossa Literatura, - ousaria sugerir que fosse seguida a norma corrente dos inquéritos, para apurar:

  1. Quantos ex-alunos do secundário, que não prosseguiram estudos literários, continuaram a ler os autores que foram obrigados a estudar.
  2. Quantos, dos mesmos, "contraíram" na escola o hábito da leitura.
  3. Quantos professores de Português leram as obras completas dos "clássicos" que ensinam; quantos acompanham razoavelmente o movimento literário em Portugal, seguindo a crítica ensaística ou a jornalística; quantos possuem biblioteca operativa e leram, pelo menos, um livro dos autores nacionais que alcançaram "best-seller"; quantos se julgam em condições de recomendar aos seus alunos, e discorrer sobre ele, um livro, extra-programa, representativo da moderna literatura portuguesa, brasileira ou africana de língua portuguesa

Seguramente, as respostas ajudariam a "comissão" a concluir se o sentimento de "martírio" ou de "inutilidade" da aprendizagem da literatura, como a conhecemos, se deve imputar aos estudantes, aos professores...ou ao Estado, como epifenómeno ou superstrutura que é da sociedade.

Leonel Cosme
investigador

P.S. - Já depois de escrito este artigo, vou ouvindo alunos e professores dizerem que as provas de Português do 12º ano foram "normais". Ainda bem que os responsáveis pela elaboração das mesmas pensaram que a maioria esmagadora dos estudantes do secundário são pessoas "normais", isto é, não pertencem à minoria dos "sobredotados" pela inteligência, cultura e estatuto socioeconómico...


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 104
Ano 10, Julho 2001

Autoria:

Leonel Cosme
Escritor - Jornalista, Porto
Leonel Cosme
Escritor - Jornalista, Porto

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