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Charles Chaplin - O "self-made-myth"

"A minha arte não é para grão-finos - é uma arte para o povo"

Charles Chaplin

Este artigo (crónica) tem história.

1º - Em conversa com o Ricardo (Jorge Costa) disse-lhe que ia ser sobre a nova vaga do cinema sueco.

2º - Posteriormente, surgiram algumas notícias interessantes. Em França no 1º trimestre deste ano os filmes franceses venderam mais entradas que os americanos. Na Suécia idem para os filmes suecos. Na Noruega o último filme de Liv Ullman teve quatro milhões de espectadores numa população de seis milhões.

Serão sintomas de uma resistência à "Hollywoodização" do cinema? Daria para algumas reflexões sobre o assunto.

3º - Entretanto tive acesso às peripécias do realizador iraniano Jafa Panahi no aeroporto JFK em Nova Iorque. Numa paragem em trânsito no referido aeroporto vindo de Hong-Kong com destino aos Festivais de Cinema de Montevideu e Buenos Aires, esteve detido durante dez horas - dez - pelos serviços de segurança do aeroporto. CRY FREEDOM...! .

4º - Finalmente caiu-me nas mãos o livro de José - Augusto França "Charles Chaplin - O "Self-made-myth". O livro foi escrito em 1951, publicado em 1953 e em seguida traduzido e publicado em francês. Mereceu na altura as seguintes palavras a André Bazin no France Observateur: "as reflexões metódicas de J - A - França sobre o mito Chapliniano constituem sem dúvida o mais profundo e completo esforço crítico sobre o fenómeno Chaplin considerado na sua significação ética e sociológica (...). Trabalho crítico capital ao qual, de hoje em diante, não poderemos deixar de nos referir".

Não resisti por isso a dar-vos a conhecer algumas passagens desta obra, especialmente dedicadas à relação entre o cinema e o público.

"Charlot só na América seria possível - e, no entanto, Chaplin mantém-se europeu, ele é verdadeiramente inglês pelas raízes da sua arte pantomínica e pela sua experiência de criança esfomeada nas ruas da Londres Vitoriana. É-o pelo seu sentido de humanidade. Da América, aproveitará a sua ingenuidade, a sua pureza esquemática, mas não só se não alienou a cegueira da civilização ianque como manteve o seu coração e a sua inteligência ligados às lembranças da sua Europa.(...).

Mediante o poder do dinheiro com que compra (o espectador) o bilhete (e assim, e simultaneamente , mais obrigado a uma consideração pela regra social e libertado do essencial elemento dessa regra, à porta abandonado), o público está pronto para o sonho a que se dispuseram, e a que tudo em volta o convida. O público fica aliviado então porque, a mecânica do mundo a que se obriga, ao pavor quotidiano, a ânsia dos relógios e orçamentos, pode opor um par de bota cambaias e vagabundas. E pode opo-las com toda a segurança - porque não são as suas botas, porque não é nos seus pés que elas virão a calçar-se...

O facto de as tomar alheias à sua comodidade habitual calçadas nos alheios pés de um ente de sonho, afasta este do sonho, aparta-o dele, e mobiliza-o no exterior. E assim o considera como suporte de um "transfert" possível dos seus pecados, da sua solidão inconfessada, das suas esperanças estranguladas. Isto é: das nossas... (...).

E assim ficamos livres. Livres de todos os incómodos à prática quotidiana, por esse acto de profilaxia poética que foi a aceitação da sua existência mítica, livres de uma terrível e secreta consciência nocturna, ao pasto da qual se lança existência afinal consentida de um sonho.

Duplamente livres? Muito mais rica é a libertação conseguida. "Vingar-nos Chaplin de todos os pontapés que não chegamos a dar no traseiro do próximo", significa substituir-nos no acto. Substituir-nos ambiguamente: pelos pontapés que dá e que nós assim deixamos de dar e pelos pontapés que recebe e que nós não chegamos a dar (...).

Se Charlot é o reflexo mítico de uma ânsia colectiva é também o reflexo de uma necessidade individual. Chaplin participa, enforma o colectivo que se reflecte mas, como indivíduo nele colocado, aparta-se da sua medida, isola-se dela. E, então, Charlot, o isolado, simultaneamente reflecte o trágico isolamento do homem e o dramático isolamento de Charles Chaplin.

Paulo Teixeira de Sousa
Escola Secundária Especializada de Ensino Artístico de Soares dos Reis

  
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Edição:

N.º 104
Ano 10, Julho 2001

Autoria:

Paulo Teixeira de Sousa
Escola Secundária Especializada de Ensino Artístico de Soares dos Reis, Porto
Paulo Teixeira de Sousa
Escola Secundária Especializada de Ensino Artístico de Soares dos Reis, Porto

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