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Rui Trindade em entrevista a "a Página"

 

O secundário é uma passagem para o superior

Uma escola pode valer mais do que apenas um diploma

Formou-se na Escola do Magistério Primário do Porto, entre 1976 e 1979, e mais tarde licenciou-se em Psicologia com uma dissertação em torno da "Psicologia do Desenvolvimento e da Educação da Criança". Tornou-se Mestre em Ciências da Educação na área da Educação da Criança, e desenvolve actualmente o Doutoramento em Ciências da Educação sobre os Discursos Didácticos Inovadores no 1º ciclo do Ensino Básico. É ele Rui Trindade, com quem conversamos em véspera da remodelação governamental que ditou a saída de Augusto Santos Silva do Ministério da Educação, ao qual destinou uma carta "sem papas na língua" na anterior edição de A Página.


Li uma vez alguém defender a ideia de que "o ensino secundário não constitui um fim em si mesmo". Concorda?

Sim, embora prefira dizer que o ensino secundário vale sobretudo como espaço de transição, principalmente no que diz respeito aos cursos gerais. Se pensarmos em termos da entrada dos jovens na vida activa, não se percebe bem qual é a mais valia de um aluno terminar o ensino básico e prosseguir a escola por mais três anos. Aliás, a função do ensino secundário hoje até nem é essa, é preparar os alunos para a entrada no ensino superior.

No caso dos cursos tecnológicos, que não deveriam constituir-se como um espaço de transição, o insucesso é significativo e não existem dados que permitam constatar em que condições se processa essa entrada no mercado de trabalho. No caso dos cursos profissionais o caso é ligeiramente diferente, porque têm uma ligação mais estreita com a vida activa, e o sucesso pode ser considerado mais significativo. Mas estes dois sub-sistemas são de alguma forma marginais a toda a discussão relativa ao ensino secundário.

Uma das ideias mais enfatizadas na sua carta ao ministro da educação, publicada na última edição de a Página, refere-se precisamente à dispersão dos cursos tecnológicos...

De facto, o ministro, no que concerne ao secundário, enfatiza muito a questão dos cursos tecnológicos. Não tenho nada contra. Resta é saber se os cursos tecnológicos existentes hoje nas escolas secundárias podem ser desenvolvidos à imagem dos cursos das escolas profissionais, como o ministro parece apontar. Há professores nas escolas profissionais que não têm habilitações para leccionar nas escolas secundárias, o que não significa que não tenham habilitações para serem excelentes professores em determinadas áreas. Como se concilia isto? É muito difícil do ponto de vista institucional pensar que os cursos tecnológicos poderão construir-se de acordo com o modelo desenvolvido pelas escolas profissionais.

Falta então uma regulamentação profissional e institucional?

Sim, mas isso é difícil, porque implica que, nomeadamente do ponto de vista dos sindicatos, haja uma discussão em torno das questões das habilitações para a docência. E esta é uma discussão que pode ser muito dolorosa. Nesse sentido, é natural que haja uma estratégia defensiva por parte das associações profissionais de professores face a este tipo de propostas, porque isso levaria à desregulamentação. E não há nenhum sindicato, graças a Deus, que aceite esse princípio.

O que me constrange é que o ministro passe completamente ao lado dos cursos gerais. Porque se olharmos para o esforço que os alunos fazem, para o que eles investem, chegamos à conclusão de que o ensino secundário serve apenas para obter um certificado que permita transitar para o ensino superior.

Considera que o aumento do número de cursos gerais de quatro para sete pode produzir alguma mais valia?

Penso que não. No substancial, do ponto de vista pedagógico e de utilidade social, esta é uma transformação superficial. O ensino secundário tem praticamente uma função certificativa. Mas eu continuo a acreditar que a escola é um espaço que pode valer mais do que a atribuição de diplomas...

O que também deveria ser discutido com alguma urgência é a questão dos programas, do que se exige dos jovens, das experiências que eles têm. Há um pequeno texto retirado de um livro de apoio de estudo aos alunos para o exame de Psicologia, que diz o seguinte: "Alerta ao aluno: (...) o programa da disciplina é por vezes incoerente, corresponde pouco aquilo que a psicologia é na actualidade. Transmite frequentemente uma ideia absoluta de assuntos acerca dos quais não há consenso entre investigadores e psicólogos. É importante que tenhas as tuas perspectivas e críticas pessoais, mas deves ter em consideração que no exame nacional elas são pouco valorizadas, pois existem critérios de correcção previamente definidos, questionáveis, por sinal, a que o aluno não pode escapar se quiser ter uma boa nota. No entanto, o mais grave de tudo, para o aluno que vai fazer o exame, é que poderá ser duvidoso que algumas das questões colocadas se enquadrem no âmbito do programa proposto na disciplina, quer ao nível dos conteúdos, quer, e principalmente, ao nível da profundidade com que a matéria é questionada" (Coimbra, J.L.; Castro, M.G.; Martins, A.C. (2001). Dossier Exame/Psicologia/12º ano. Porto: Edições Asa)

Ou seja, uma das principais questões do ensino secundário passa por questionar o que lá se anda a ensinar. São programas enciclopédicos, precocemente especializados e desnecessários. É como se todos os alunos de psicologia fossem entrar para o curso de psicologia, e isto é um importante factor de estrangulamento. E face a isto assistimos a um "silêncio ruidoso" por parte dos responsáveis ministeriais, que poderiam assumir a dificuldade de lidar com um conjunto de "lobbies" que impedem a transformação de programas, e entender esta questão como um objectivo estratégico.

Nos últimos anos a percentagem do Produto Interno Bruto destinado à educação tem aumentado, atingindo hoje uma fatia de cerca de sete por cento. Parece-lhe que esse crescimento tem produzido efeitos ao nível do aumento da qualidade do sistema?

Eu não tenho a certeza que não produza efeitos, porque não sei os efeitos que produz... A questão de fundo, na minha opinião, prende-se com a própria definição do ensino secundário e, sobretudo, com a sua subordinação ao ensino superior, principalmente no que se refere aos cursos gerais. O ensino secundário acaba hoje por ser uma espécie de estudos menores do ensino superior. Este é o seu calcanhar de Aquiles e não considero que seja um problema fácil de resolver, porque requere alguma dose de coragem política, de diálogo e de construção de alguns consensos. E isto não é fácil, porque o ensino superior não é, de facto, um interlocutor acess?vel. Mas creio que acima de tudo esta é uma questão eminentemente pol?tica.

A minha anterior pergunta surge na sequência de um excerto da sua carta ao ministro da educação, publicada no anterior número de a Página, onde refere a certa altura "o discurso optimista sobre as condições materiais e logísticas que as escolas possuem para cumprir o seu mandato educativo"...

Essa afirmação surge na sequência de o ministro considerar que existe um computador por cada 24 alunos em Portugal... E que esta não era uma opinião, era um facto. Pareceu-me uma atitude bastante arrogante, já que se em algumas escolas essas condições logísticas existem, em outras não. O meu colega Manuel Jacinto Sarmento fala de uma questão importante, aquilo a que ele chama a dinâmica contratualista do Ministério da Educação, considerando-a como um dos eixos da política educativa deste ministério: a proliferação de financiamento através de projectos a que as escolas se candidatam, considerando-a como um recurso.

Não pondo em causa a possibilidade de as escolas recorrerem a estas linhas de financiamento, resta saber até que ponto esta pol?tica não tende a desresponsabilizar o ministério por apetrechar as escolas com aquilo que se considera ser o mínimo indispensável para o seu funcionamento. É esta assimetria que também me parece questionável do ponto de vista das pol?ticas do ministério.

Voltando à questão, não é possível então concluir se existe uma relação directa entre os investimentos realizados e os resultados adquiridos...

Bom, é preciso ter em atenção que, apesar de tudo, hoje há mais alunos no ensino secundário...

E com uma das mais baixas taxas de conclusão da Europa...

Exactamente... E que o próprio ensino superior vive hoje o seu processo de massificação. Mas também é verdade que esse desafio é relativamente recente, iniciando-se com a aprovação da Lei de Bases do Sistema Educativo e, mais tarde, com a política do ex-ministro Roberto Carneiro de apoio ao ensino superior privado.

Depois - e sem pretender que isso sirva de desculpa - é preciso perceber o peso de uma herança. Hoje, apenas 15% da população portuguesa situada na faixa etária entre os 25 e os 65 anos tem frequência do ensino secundário. Por isso é que eu não sei se esse aumento produz ou não efeitos, porque a população com menos de 25 anos está agora na escola. A questão que se levanta é falar sobre o sentido e o significado do ensino secundário.

Continua a dedicar-se uma parte substancial do discurso educativo às condições materiais do ensino, mas esquece-se as práticas educativas e os discursos didáticos inovadores; por outras palavras, o que é ensinar e aprender. Porquê este desfasamento?

A formação inicial de boa parte dos professores ocorre, em grande medida, no momento em que entram numa escola. Ou seja, o problema que hoje temos de discutir são os moldes em que essa formação inicial se processa. Porque ela não nos permite uma reflexão, não nos permite entrar em contacto com outras experiências, desnaturalizar conceitos... O que é isso do aprender e do ensinar? É um conceito consensual, naturalizado - tal como o próprio conceito de escola -, que parece não merecer muita reflexão. Mas merece-a.

Desconstruindo o próprio conceito da profissão...

Sim, e esse processo de desconstrução deve começar logo na formação inicial e ter em conta a especificidade da profissão. E a função do professor é, e continua a ser, a de ensinar. Mas esta questão não é suficientemente valorizada na formação inicial. Não significa isto que não haja experiências excelentes, tal como há experiências completamente inversas, é preciso não esquecer que a formação inicial é um campo de acção muito heterógeneo.

Por outro lado, debatemo-nos ainda com alguns equívocos sobre as questões do ensinar e do aprender, levando alguns a defender que esta é uma fuga de natureza pedagogista. Na minha opinião essa posição é um equívoco, porque o ensinar e aprender não significa "desligar-se" da discussão em torno do sentido da educação escolar, das finalidades políticas, culturais e sociais da escola. É também face a esta discussão que cada um se posiciona face ao que é o aprender e o que é ensinar.

Aprender e ensinar não tem nada de natural, são intervenções de natureza cultural, que expressam formas de pensar o que é ser aluno, o que é ser professor, o que é ser homem, o que é ser mulher, que mundo pretendemos construir, o que implica discussão. E essa discussão não existe. É óbvio que esta questão não pode ser colocada de uma forma tão generalista, porque ensinar e aprender matemática é uma coisa, ensinar e aprender português é outra, e por aí adiante... Mas estas questões deveriam ser parte fundamental do processo de formação inicial.

Questões que a formação contínua habitualmente também não contempla...

Apesar de não termos uma consciência exacta dos efeitos da formação contínua, penso que ela não deverá ter um efeito "ortopédico", corrigindo as falhas da formação inicial. É um equívoco.

Outra discussão que continua adiada prende-se com os níveis de exigência e o rigor na escola. Será que ela passa pela divulgação do "ranking" de escolas, como alguns defendem?

Essa é hoje uma discussão fundamental. E nem sequer se prende com isso, porque não é a divulgação dos "rankings" que me garantirá qualquer tipo de rigor ou de exigência. Os meritocratas que defendem a publicação dos "rankings", os exames, as reprovações, a selecção - que permita valorizar quem tem talento, quem tem mérito, quem se esforça -, têm um tipo de discurso que fez algum sentido num tempo determinado. Hoje parece-me que a escola acaba por cumprir ela própria uma função social, de alfabetização das massas no sentido de promoção ou construção das elites. Face aos grandes problemas e desafios que se colocam hoje ao mundo, nomeadamente a sociedade da informação, penso que a escola poderá ter um papel bem mais importante do ponto de vista social do que estes discursos dão a entender.

E é por essa razão que a discussão do rigor e da exigência é algo que deve ser equacionada de uma forma mais ampla. Quando se fala de mais exigência e rigor, esse discurso recai sobre os alunos. mas não se discute a forma como o professor ensina, os materiais que utiliza... A exigência e o rigor que eu defendo implica a escola, os professores, as instituições, o Ministério da Educação, que também eles deverão ser objecto de rigor e de exigência. Uma escola democrática só se constrói com exigência e com rigor. E é aqui que muitas vezes os discursos democráticos sobre educação não são suficientemente claros, porque parece que a questão da exigência e do rigor pertence apenas aos discursos meritocráticos, conservadores.

É curioso que aqueles que mais falam de exigência e de rigor o façam de uma forma tão pouco exigente e rigorosa, falam do cor, de lugares-comuns, de uma visão completamente distante da realidade das escolas. As escolas que na minha opinião são exemplares - não são excelentes -, caracterizam-se pela exigência e pelo rigor, que se intrepelam, se auto-avaliam, que encontram caminhos diversos, que têm uma tendência inclusiva. E para tal têm de ser exigentes e rigorosas, não apenas com os alunos, mas também com as condições que criam para que eles possam aprender.

Considera que alguns processos de avaliação estão desajustados? Refere-se às Provas Globais, por exemplo, como "anacronismos pedagógicos". Porquê?

Sim, apesar de a avaliação poder ter uma natureza diversa de acordo com os diferentes ciclos de aprendizagem. No ensino secundário, e por força do seu papel como nível de ensino de transição, a avaliação acaba por ser de natureza mais conservadora, selectiva. No 1º e 2º ciclo, e apesar de todos os problemas e equívocos com se defrontam os professores e as escolas destes níveis de ensino, ela tende a ser de natureza mais inclusiva, formativa.

E há excelentes exemplos de professores e de escolas que fazem uma avaliação cuja finalidade é apoiar as suas decisões enquanto professores, no sentido de co-definir aquilo que deverá ser um percurso escolar adequado ao ritmo de aprendizagem dos alunos, ao seu capital cultural e mesmo às exigências do próprio programa.

Considera que algumas dessas práticas conseguiriam ser aplicadas ao ensino secundário?

Não, porque os professores não têm margem de manobra. No âmbito da actual revisão curricular do ensino secundário, o ministério diminuiu o número de provas globais de avaliação e de exames. Mas esta é uma medida conciliadora, que caracteriza de certo modo as próprias práticas dos governos socialistas. E mesmo que - como eu digo na carta ao ministro - admita que não tenho alternativa aos exames finais do ensino secundário, já quanto às provas globais parece-me ser uma decisão que cabe a cada escola assumir.

Mais: porque é que existem provas de avaliação global? Qual é o seu sentido? É saber se o aluno domina a matéria toda? Qual é o interesse? Nenhum de nós domina a matéria toda. Ou seja, o interesse da prova global é saber se o menino tem ou não a informação. No contexto de uma escola que pretende transmitir informação isto até faz algum sentido, mas numa escola que pretende mais isto parece-me um anacronismo.

As provas de avaliação global fariam algum sentido se os programas estivessem articulados, e não estando correspondem apenas a uma tentativa de fazer passar a imagem de que em Portugal somos muito rigorosos nas escolas. E é esta ideia que considero necessário combater. Uma escola não é mais rigorosa apenas porque faz mais exames, uma escola não é exigente apenas porque avalia os alunos nos finais dos ciclos de aprendizagem.

Então, que processos de avaliação para atingir esse rigor e exigência?

Através da avaliação contínua, através da participação e do conjunto de atitudes assumidas pelos alunos. A própria avaliação aferida não é de pôr de lado, mas não da forma como tem vindo a ser feita. Os alunos do 4º ano de escolaridade foram avaliados através de provas de avaliação aferidas pelo segundo ano consecutivo. Mas não bastou um ano para se perceber como funciona o sistema, quais os seus pontos fortes e fracos?

Aquilo que me parece que traduziria alguma exigência seria saber quais as medidas que o Ministério da Educação, em conjunto com as escolas e com os professores, irá assumir de forma a tentar corrigir aquilo que a avaliação demonstrou serem aspectos menos positivos. Isso é que deveria ser publicitado, não os "rankings", que têm um efeito perverso. Temos o exemplo da Irlanda, onde as escolas pior classificadas não melhoraram o seu desempenho.

Acha que as associações profissionais e sindicais de professores deviam ter um papel mais activo na procura de respostas para estas questões que abordamos?

Acho que sim. Há algumas questões que mereciam um enfoque mais alargado. No caso das organizações sindicais, por exemplo, a dignificação da classe e da função docente - fundamental nos dias que correm - não é algo que possa ser discutido exclusivamente em torno do estatuto sócio-económico. Essa discussão deverá ser produzida articulando constantemente a dignificação da carreira docente com a afirmação de uma escola que tem de se pautar por pressupostos e princ?pios de natureza democrática. Se isto não acontecer, caímos numa posição excessivamente corporativista, e essa atitude parece-me ficar a dever algo a intenções de natureza democrática.

Por outro lado, algumas associações profissionais têm realizado um trabalho interessante, mas sem grande visibilidade pública. É preciso que a reflexão em torno dos interesses próprios das classes profissionais que actuam na escola tenha um sentido político, e isso implica compromissos. No caso do nosso sindicato, o Sindicato dos Professores do Norte, este compromisso político é de esquerda, e isto tem de ser claramente afirmado na forma como se olha para a questão do mal estar docente, para a violência na escola, para a falta de condições de trabalho dos professores, etc.

A professora brasileira Regina Leite Garcia, entrevistada no último número da página, declarou que um professor não pode ser neutro. Concorda?

Concordo, e muito menos as suas associações profissionais. Se cairmos na ilusão de pensar que o nosso trabalho é meramente técnico, à partida todo o seu impacto social e educativo estaria perdido, porque aquele trabalho - e voltamos à questão do ensinar e de aprender - pressupõe opções de fundo sobre o que é ser aluno, ser professor, para que serve a instituição escolar, estamos a formar estes jovens para quê, com que sentido, na base de que valores? E parece-me que esta é uma discussão que está feita, embora se perceba que para ser ter alguma credibilidade as pessoas se tendam a afirmar pela sua dimensão tecnocrática, porque ela cria a impressão de que podemos ser neutros face às nossas necessidades comezinhas, às nossas necessidades humanas. E isso não é poss?vel..

Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa

  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 104
Ano 10, Julho 2001

Autoria:

Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto

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