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Lili e as drogas

Faz hoje parte de uma certa pose das pessoas cultivadas desprezar a televisão: seria o sítio que, salvo boas excepções, alimentava o povo com produtos de engorda fácil, crivados de mediocridade, plenos de imediatismo e de irreflexão. Todo o contrário, afinal, do bom gosto e da excelência de quem navega no magistério intelectual. Quem assim milita numa espécie de virgindade do espírito exibe, sem ter a menor ideia do facto, tanta pequenez como aquela que quer arrasar. Ou será difícil perceber que o ecran televisivo é um espelho de aumentar e um potente instrumento de diagnóstico social?

Vamos, pois, ao diagnóstico. Como anda tratada a questão da droga no plenário público, qual é o estado bruto do tema no linguajar e nas consciências e nas atitudes do português semi-médio? (Perdoem-me os estatísticos: não sei o que é o português médio). Quem, como eu, um dia acertou por via do zapping em Lili Caneças no famigerado "Bar da TV" ficou, em três eloquentes minutos, a saber como anda o fenómeno droga tratado na praça pública: uma sucessão de frases feitas, unicamente ancoradas em convicções pessoais e em atitudes morais sem ligação real com o problema real em discussão. E não se argumente sobre a ignorância de quem assim falou: quem não quer ser Lili não lhe veste a pele. Lili é central, é o epicentro do vazio com que actualmente se lavram opiniýes, é a imagem da alegria que pode haver em ter acesso à radiodifusão mesmo sem ter o que quer que seja para dizer. Assente esta premissa de base, passemos ao que (não?) interessa.

Há fenómenos que, pela forma como nos interpelam e inquietam, passam de mão em mão e de boca em boca instalando-se, finalmente, numa "zona objectiva impura" - assim lhe chamava Bachelard para designar uma amálgama onde se misturam crendices com intuições pessoais, onde se cruzam memórias e histórias, onde convergem saberes rigorosos e resultados experimentais. Estes fenómenos, dizia o filósofo, fascinam o olhar, mas também o turvam; e convocam seduções, em vez de obedecer às deduções. Eis o que acontece com o fenómeno droga: pronuncie-se a palavra e logo ela abre passo a um cruzar de discursos em que toda a gente sabe, em que todos nós já vimos e dissemos. Porque não se pronunciou a apresentadora do ?Bar da TV? sobre o sistema de filtragem a instalar nas chaminés das co-incineradoras? Ou sobre as características do sistema informático utilizado pelos espiýes da CIA? A resposta parece óbvia: porque se trata de temas de ultra-especialidade, só ao alcance de elites científicas. E em segundo lugar, não interessam ao público - em suma, nem Lili saberia o que dizer, nem as audiências estariam para a ouvir. Por isso, fale-se antes de droga. Ou de aumento do crime. Ou de pedofilia, de maus tratos infantis, de violência sobre as mulheres. É tão fácil como falar de moda, e tão ligeiro como ir ao cinema.

A elevação destes temas à categoria quotidiana de entertenimento, submetendo-os ao registo emocional e aos juízos do tipo "acho bem / acho mal", "valha-me Deus / não pode ser!", "temos todos de unir as mãos / temos todos de combater", etc..., converteu-os num emaranhado socio-cultural que representa actualmente a primeira dificuldade séria de que estão prisioneiros.

A segunda grande dificuldade é que o estado pastoso deste caldo primitivo de proto-ideias acerca da droga, de que Lili no "Bar da TV" é tão sabiamente uma patética caricatura, estende-se com alegre insensatez ao discurso político. A droga provoca sofrimento e constitui uma ameaça à nossa noção ingénua de sociedade harmoniosa. É, portanto um bom objecto para o combate político que identifica problemas para sobre eles erigir promessas e vender receitas - coisa que se faz tanto melhor quanto mais movediço estiver o estado do terreno.

Terceira dificuldade: a colonização política do fenómeno psicotrópico estende-se ao aparelho oficial do chamado "combate à droga". Esperaríamos ver, neste patamar, aparecer finalmente o nível da especialidade, o tratamento rigoroso da problemática, o plano técnico a informar decisýes e políticas. Seria assim com qualquer problema que exigisse o cuidado assente no saber e na ciência, que obrigasse ao acerto, ao método, ao rigor. Mas já vimos como a droga é um objecto em que qualquer um pode pegar, em que qualquer cabeça tem ideias e qualquer pregador de café soluções...

A área dos chamados "problemas sociais", de que a droga é hoje um dos exemplos primeiros, é particularmente ingrata para o pensamento científico: extremamente vulnerável à argumentação ideológica, torpedeada a todo o momento pela retórica política e pelas conveniências morais, só a muito custo consegue exercer as condições que devem presidir à análise sistemática, empírica, teórica e crítica. O vigor das discussýes a quente e a pressa de ganhar as batalhas relegam a serenidade do pensamento para último plano. Tem sido este o maior obstáculo para lidar dum modo inteligente com o fenómeno. Algo que, de resto, se mostra muito difícil de reverter, dada a grande massa inercial histórica que transporta: remonta já à época dos Descobrimentos o início do mal entendido. Bastaria revisitar as vicissitudes de que foi alvo a folha da coca na colonização espanhola, ou do ópio no império britânico e nas rotas mercantis portuguesas. Teríamos de desmontar a essa matriz inicial para perceber-mos como o "problema da droga" se constitui, desde aí, como objecto de negociação religiosa (a folha da coca era sagrada no império Inca), política (o ópio era uma das maiores fontes de receita da coroa britânica) e moral (os usos destes produtos relevavam de cosmovisýes próprias às populações autóctones, que a atitude colonialista queria substituir pelo projecto universal das Luzes).

Instalado desde aí numa "zona objectiva impura", o seu regime de sobrevivência é o do interdito, da demagogia, o da paixão argumentativa, o da censura e do estigma. Se o estado de coisas, em vez de ser assim, permitisse algo mais do que afirmações lilianas, poderíamos sem dúvida ter outras perspectivas para uma abordagem menos sofredora do "problema da droga".

Luís Fernandes

  
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Edição:

N.º 104
Ano 10, Julho 2001

Autoria:

Luís Fernandes
Professor da Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. do Porto
Luís Fernandes
Professor da Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. do Porto

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