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(Re)inventar as comunidades

A experiência acumulada durante alguns anos a trabalhar com toxicodependentes, oriundos do interior norte rural e suburbano, num centro de recuperação, leva-nos a reflectir sobre os recursos e a "saúde" das comunidades, as condições de iniciação nos comportamentos desviantes e as atitudes preventivas.

A caracterização das comunidades de onde são oriundos estes toxicodependentes, (quer sejam rurais ou suburbanos) apresenta, regra geral, um padrão que se repete. São localidades em desagregação, os rituais "antigos" e as actividades tradicionais estão em franco declínio. A vida associativa e comunitária é reduzida. Por vezes, existe o clube de futebol local e algumas associações que promovem determinadas actividades (p.e. ranchos folclóricos). Pelo que podemos constatar, estas não têm o poder de dinamizar e galvanizar os jovens. Raramente há associações dinamizadas por jovens e, mais raramente ainda, com actividades menos tradicionais. Raramente - para não dizer nunca - constatamos que estes jovens não integraram qualquer tipo de actividade social, associativa ou desportiva, mesmo antes do início do consumo de substâncias. Referem antes, e com muita frequência, o envolvimento em actividades da cultura "antiga" (p.e. ir ao rio nadar, ir aos pássaros, brincar com fisgas, fazer e andar em carros de rolamentos), actividades praticadas até ao fim da infância. No entanto, integrar novas actividades e ajudar a implementá-las é situação extremamente rara. Como raro é encontrar utentes que tenham participado nalguma estrutura cívica (p.e. organizações de defesa do meio ambiente) ou numa estrutura político-partidária. Muito raramente encontramos algum que exerça o direito de voto.

Por outro lado, nestas comunidades, existem sempre em maior ou menor número locais de consumo (cafés, bares, discotecas, etc.) que são vistos como locais atractivos.

Podemos, pela nossa experiência, constatar a falta de "saúde" destas comunidades. Os rituais que eram actos aglutinadores e dinamizadores, ou já não existem ou estão moribundos, sem que outras existam, a não ser os locais de consumo ou os media que fazem, como sabemos, a promoção do consumo estereotipado das coisas, de ideias, de estilos, de culturas. Razão pela qual nos parece podermos concluir que o choque entre estas comunidades funcionando ainda com o modelo "antigo" e o modo de vida toxicodependente é aqui mais gritante em comparação com os grandes aglomerados urbanos.

Estas constatações levam-nos a reflectir sobre o que é possível fazer de modo a que estas comunidades sejam mais "saudáveis", sejam galvanizadoras das novas gerações, lhes criem identidade, sentido de pertença.

Parece-nos importante ajudar a desenvolver no seu seio aos vários níveis e de forma proximal, sem muitos burocratas, a ideia de que em qualquer sítio onde estejamos podemos sempre inventar, fazer algo diferente, descobrir novos caminhos, exercitar este poder dos humanos que é inventar, imaginar - e isto colectivamente em associação.

É esta atitude (ou melhor, a falta dela), e não tanto os recursos (dinheiro) que torna as comunidades moribundas, apáticas.

Ora, esta ideia/atitude parece-nos que deve ser desenvolvida a par das infraestruturas básicas (água, saneamento, estradas, etc.), no seio das comunidades, associações, nas colectividades (um animador sócio-cultural custa menos do que um engenheiro civil), e fundamentalmente na escola.

É nesta que os muito jovens podem e devem experimentar o exercício do poder sobre eles próprios, sobre as suas existências e as suas circunstâncias, num ambiente que deve ser securizante e tranquilo. Sabemos que é esta a atitude que permite formar cidadãos cada vez mais conscientes da responsabilidade na sua auto-construção, na procura de sentido.

Constatamos que está arruinado o padrão "antigo" das comunidades, e os seus rituais que permitiam uma extrema etologização dos comportamentos não são valorizados. É preciso, no entanto, encontrar novos modelos que ultrapassem o puro consumismo e que passem pela aprendizagem do poder (individual e colectivo) que temos sobre nós, sobre a nossa existência e as suas circunstâncias ... nem tudo é fatalmente assim (apático)... mas nem tudo é possível mudar...

Constatamos recentemente na imprensa, uma ilustração desta nova atitude. Uma escola secundária - "Externato Secundário do Soilo" situado no Sabugal -, com o apoio de uma empresa local, concebeu e construiu um protótipo de um automóvel ecológico com que participou na 17ª Shell Eco-automóvel Marathon, competição realizada em França, onde ganhou um prémio. Lia-se nos olhos dos miúdos a tal galvanização...

Se é verdade que o que se passa na "cidade" é o que se passa nos indivíduos, então é preciso que esta atitude seja assumida pela escola, pelas colectividades, pelas associações, resultando daqui uma sociedade mais rica, mais viva, menos apática, e assim também cidadãos mais ricos, mais vivos e mais conscientes do seu desígnio - dar um destino ao seu destino - e desta maneira talvez ajudando a prevenir comportamentos desviantes.

Eu acredito nisso.

António Fachada
Psicólogo

  
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Edição:

N.º 104
Ano 10, Julho 2001

Autoria:

António Fachada
Psicólogo
António Fachada
Psicólogo

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