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Isto das crianças é uma coisinha que morre muito

Pedagogo Doutorado
dá Volta ao Mundo e Fica Atarantado ?
Pedagogo Atarantado
dá Volta ao Mundo e Fica Doutorado ?
Doutorado Atarantado
dá Volta ao Mundo e Fica Pedagogo ?

Professor atarantado; primeira@visualnet.com.br

 

Como se diz nalgumas regiões do Brasil, morre-se de morte matada e de morte morrida. Nestes casos morre-se fisicamente. Ou seja, quem parte é o morto. Mas pode morrer-se sem partir. Ou talvez seja mais correcto dizer-se que muitas vezes são as paixões, os amores, os conhecimentos, as relações, os prazeres e as angústias que morrem para nós. Ou nós morremos para elas. Ou nós e elas passamos a viver em mundos paralelos. Vamos até ao infinito sem nunca mais nos encontrar-mos.

A paixão é um estado de exaltação que resulta do desejo de conhecer. O desejo de conhecimento completo e a dificuldade de materializar tal desejo gera o sentimento de exaltação ou de paixão. Apaixonamo-nos por pessoas, por coisas e conhecimentos. A história de Romeu e Julieta é o exemplo acabado da paixão. Os jovens querem desesperadamente conhecer-se ? incorporar-se um no outro ? mas toda a conjuntura é adversa a esse desejo, daí a exaltação, a angústia, o desespero, o acto heróico, o suicídio. Podemos apaixonar-nos pela História, a Filosofia ? quando sentimos um desejo profundo de as conhecer e elas se revelam fugidias, difíceis e cada vez se nos apresentam mais misteriosas, desconhecidas.

O amor é um sentimento mais calmo do que a paixão e sucede a esta na ordem natural dos sentimentos. O amor supõe já a posse de algum conhecimento do outro. No amor uma parte do outro já faz parte de nós mas ainda há muito para conhecer. É pois o amor mais estável do que a paixão porque entre os que se amam se estabelece uma ponte que permite o vai vem do conhecimento e do reconhecimento. Uma ponte de estabilidade. Neste sentido podemos amar a História e a Filosofia quando delas já temos algum conhecimento seguro, o suficiente para despertar e manter o interesse por alargar e aprofundar tal conhecimento. O amor termina quando se assume o desinteresse (desilusão) do conhecimento do outro, das coisas ou dos conhecimentos.

A amizade é um sentimento superior aos anteriores. É um estado calmo e difícil de atingir. Pressupõe uma larguíssima partilha de conhecimento mútuo. A amizade está relacionada com o saber. A sabedoria ? forma superior de conhecimento ? é um bem acessível aqueles que têm o privilégio de manter uma profunda relação com campos do conhecimento. Neste sentido somos amigos de uma ou mais áreas do conhecimento quando temos o privilégio de as conhecer em profundidade. Noutro plano das relações podemos afirmar a nossa amizade pela Teresa, A Sofia, a Catarina, o João ? escolham outro nome.

Se estes pressupostos tivessem alguma validade, poderiam levar-nos a dizer que a educação e o ensino são actos capazes de despertar paixões que conduzam ao amor e desagúem numa calma e profunda amizade. Educar e ensinar é criar condições que despertem interesses, desejos de conhecer, estados exaltados de paixão pelo conhecimento. É ajudar a encontrar o caminho que permita a cada um ser um amigo do saber. Mas a educação e o ensino raramente são assim.

Recordo um episódio ocorrido em 1968. Nesse ano participei numa tentativa, semi-clandestina, de "estudo sociológico" da população da zona da Lapa, na cidade do Porto. O estudo iniciou-se com um inquérito à população residente. Numa das casas em que entrei para fazer o inquérito, notei que corriam por ali muitas crianças com idade em escada. Ao chegar à pergunta: a senhora quantos filhos tem? Obtive a seguinte resposta:

? "oh! meu senhor, eu, graças a Deus, filhos já tive dezassete, mas agora já só tenho onze, saiba meu senhor que isto das crianças é uma coisinha que morre muito". Resposta-comentário impossível de esquecer.

Diremos que de morte morrida morrem hoje em Portugal menos crianças do que há trinta anos. Mas de morte morrida e de morte matada continuam a morrer crianças de mais quando olhamos o mundo na sua globalidade. As crianças continuam a ser uma coisinha que morre muito, de todas as formas de morte, mas sobretudo, da morte para o conhecimento e o saber.

Depois do 25 de Abril, como aconteceu com muita gente, tive ocasião de participar em várias iniciativas a que chamámos de acção cultural. Lembrei-me nessa altura, muitas vezes, da resposta-comentário daquela senhora em 1968. É que olhando à volta me parecia que mais do que despertar paixão, amor, amizade pelo conhecimento e a cultura, com frequência a "acção cultural", pela falta de competência com que a desenvolvia-mos, semeava o desinteresse, a desilusão, a morte das crianças e dos adultos para o conhecimento, ou a morte deste para eles.

Não falo hoje em morte para o conhecimento ? é demasiado forte ? mas falo em vacinação contra o desporto, a música, o teatro, o conhecimento em geral, sempre que o ensino destas áreas é entregue ao voluntarismo e amadorismo dos "ensinantes". Neste sentido, no mundo da educação, não serão só muitas crianças e jovens que continuam a ser vacinados contra o saber, mas também alguns professores têm sido frequentemente vacinados em "acções de formação" ? ou de vacinação?

Voluntarismo, improviso, amadorismo e a confusão que resulta deles. A formação inicial e continua dos educadores e professores, nos últimos 25 anos, estão marcadas frequentemente por estas atitudes e práticas. Uma formação mais ditada pelas paixões ? ou paixonetas? ? de alguns formadores, do que da necessidade dos formandos de darem seguimento aos amores e amizades que foram tecendo. Uma formação com implicações no modo de estar, na confusão, na falta de coesão e no ânimo e desânimo de muitos educadores e professores. Práticas de formação a repensar. Se o não fizermos também muitos de nós vamos morrendo para o conhecimento e naturalmente para o trabalho. Também vamos sofrendo as consequências das inúmeras vacinas, sendo natural que nos sintamos atarantados. Tão atarantados que, sem darmos por isso, confundimos ensino com vacinação.

Na escola de hoje as crianças e os jovens continuam a ser uma coisinha que morre muito. Não de morte matada ou de morte morrida como aconteceu às crianças da senhora da Lapa, mas das vacinas a que agora estão obrigadas.

Nas escolas ? públicas ou privadas ? vacina-se muito. Não tanto por culpa dos professores que continuam a não ser donos do seu destino profissional e do destino das suas escolas, mas por culpa de um sistema que teima em premiar o improviso, a moda, o palavreado, o faz de conta, o jeitinho para ensinar, as "experiências giras", o voluntarismo e o amadorismo a todos os níveis.

Será de pensar nestas coisas correndo o risco de ficar ainda mais atarantado? Pois não é tudo normal e natural? Isto das crianças será sempre uma coisinha que morre muito. Não é assim? Aprender não é para todos. Pobres e burros sempre os teremos. A escola sempre se organizou assim. Sempre foi assim. Sempre se ensinou e aprendeu assim. Os educadores e professores também foram e são vacinados assim. O país é assim. O mundo é assim. A vida é assim. Nós somos assim. Que havemos de fazer?

Férias em Agosto. Não é assim?

José Paulo Serralheiro

  
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Edição:

N.º 104
Ano 10, Julho 2001

Autoria:

José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.
José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.

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