Página  >  Edições  >  N.º 103  >  O Lusomundialismo de Miguel Torga

O Lusomundialismo de Miguel Torga

Completaram-se cinco anos, a 17 de Janeiro passado, sobre a morte de Miguel Torga e setenta sobre a publicação do livro que inicia a sua bibliografia oficial, Rampa (1930), já que o primeiro, Ansiedade(1928), foi retirado do mercado pelo autor.

Num momento em que muitos países parecem estar a reinventar-se na emergência de identidades etnoculturais que se julgavam encerradas num certo tipo de Estado-Nação; mas, por outro lado, parecem abertos à adopção de um modelo de vida unidimensional introjectado por uma generalizada noção de desenvolvimento, eficácia e bem-estar - é salutar e balsâmico, qual banho em água lustral, "regressar" sempre ao Portugal de Torga e imaginar, com ele, como o "continuum" lusitano pode permanecer entre uma batida às perdizes, nos montados de Trás-os-Montes, e a atracção do Mar, no promontório de Sagres. Afinal, nada de espantar: sempre são mil anos de memória colectiva, a calcorrear serras e oceanos. Ele o diz:

"No meu sangue há uma ancestralidade nómada pelo menos tão vigorosa como a atracção dos pólos nativo e adoptivo a que regresso sempre. É uma necessidade de caminhar, de devorar léguas, de conhecer terras, de perspectivar o mundo de todos os ângulos."

Ou:

"É nossa sina não caber no berço. Desde os primórdios que somos emigrantes. O português pré-histórico já era aventureiro, navegador, missionário, semeador de cultura.(...) Todos os caminhos transversais de Portugal vêm ter ao mar. Verificá-lo, é avivar na consciência a nossa razão de ser. Que nascemos para embarcar. Ou de imediato, ou na lembrança ou na imaginação."

Mas Torga era visceralmente um marinheiro-de-terra, um emigrante torna-viagem assumido, que inscrevia a Aventura da vida entre dois pólos: o desafio de partir e a necessidade de regressar ao berço:

"A província. O protoplasma da pátria. A substância onde se processa o metabolismo que lhe garante o equilíbrio homeostático. A arca das suas virtudes, a que nenhum mofo consegue esmaecer a pulcritude. A constância dos actos no tempo."

Embora transplantado, na adolescência, para o Brasil, - "Brasil dos meus assombros de menino (...) cais do lado de lá do meu destino" - não se julgava um emigrante igual a todos os outros que apenas a miséria levara a escapar do país natal. Para ele, para o Português, partir era um Destino:

Vou, como novo andarilho,
Garantir ao futuro que Portugal
Terá sempre o tamanho universal
Da infinita inquietação de cada filho.

Viajando por quatro continentes, Torga precisou de se certificar de que ser português no Brasil, em Angola, Moçambique, Goa ou Macau, era sentir "essa vocação planetária, essa inquietação dispersiva que faz do português um peregrino das sete partidas, um cidadão do mundo."

Mas em 1974, na iminência do fim do império, ouvindo já o "dobre a finados", o "andarilho" encara a viagem do definitivo regresso:

"Nómadas do mundo, teremos de ser agora sedentários conviventes numa Europa onde sempre coubemos mal e nunca nos soubemos realizar. Partir era a nossa carta de alforria. Hoje os caminhos não serão já os da demanda de espaços abertos a uma afirmação tolhida no berço, mas de um achamento interior protelado a fio."

Em 1987, vai ainda ao Oriente. É a sua derradeira viagem "a maravilhar-se com a dimensão incomensurável de cada criatura (...) aqui branca, ali negra, acolá amarela, sempre variada na aparência e igual realidade." Depois de uma breve passagem por Macau, numa "visita de amor (que) é uma despedida" de quem se sente "português até aos últimos confins de Portugal (...) descendente infeliz de uma raça heróica e absurda, que senhoreou o mundo, e anda agora por ele a cabo a matar saudades", regista, em Goa:

"O chão da igreja de S.Francisco de Assis parece um cemitério de melancolia. Os nomes e os brazões quase apagados. A pisá-lo, tem-se a sensaçãode que se calca a pátria sepultada, real e simbolicamente, numa sua parcela desmemoriada. Antes não tivesse vindo! Convencido de que a podia alargar, e o que eu perdi da minha dimensão lusíada nestes três dias!"

Em 1993, no último tomo dos "Diários" que vimos seguindo, nos quais, ao longo de mais de cinquenta anos, verteu inquietações, assombros, angústias, e algumas certezas e esperanças, o seu pessimismo a respeito do futuro do Portugal "de raízes e vínculos", agora na perspectiva da sua diluição na Comunidade Europeia, tange a finados:

"Já não temos fronteiras marcadas e respeitadas, nem alfândegas de autoridade a verificar o que entra e sai, sem poder de decisão, nem voz própria, nem mesmo liberdade de semear e colher. Nem vontade mesmo de trabalhar e viver à nossa custa, e de mão estendida, como pedintes desavergonhados, de todo esquecidos do que sempre fomos, esforçados, autónomos, remediados, e ufanos da nossa mediania. E ricos, sim, de humanidade e sonho de aventura. E de tudo abrimos mão. Que mais nos falta perder?"

Não se confunde, todavia, este apego a uma dada configuração da identidade nacional com uma visão imobilista do Mundo. Será antes uma mágoa nostálgica, o receio de que o movimento inelutável da História, mais uma vez em nome do "progresso", ameace desfigurar o "seu" Portugal, mudando-lhe rosto e a alma. Por isso, as suas últimas páginas são uma exortação, um apelo, um "sursum corda!":

"... e a humanidade tem de começar de novo e doutra maneira, sem perder de vista a singularidade de cada indivíduo no seio das multidões uniformizadas. Será mais uma utopia a juntar às inúmeras que, desde as origens, sucessivamente nos seduziram e motivaram. Mas, sem um sonho a encher-nos o vazio da noite da vida, como poderíamos amanhecer contentes de nós?"

Até ao fim, Torga carregou um sentido dilemático de Portugalidade como o caurim a sua concha. "O difícil para cada português não é sê-lo; é compreender-se." Bem se poderá dizer que ele foi o último poeta-cronista dos "lusíadas" do século XX.

Leonel Cosme
investigador

  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 103
Ano 10, Junho 2001

Autoria:

Leonel Cosme
Escritor - Jornalista, Porto
Leonel Cosme
Escritor - Jornalista, Porto

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo