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Crónica de um pai estupefacto...

Aniceto encontrava-se adoentado. Como ainda tinha uns dias de férias por gozar, telefonou para o Banco e decidiu ficar em casa. Vestiu-se de modo informal e foi para a sala. Ligou a televisão e aproveitou para fazer uma leitura mais cuidada da revista do "Expresso". Um "olá pai" inesperado e ruidoso interrompeu-lhe o silêncio.

- Já conheces a Teresa ? - Conhecia de vista.

- Não te incomodas que fiquemos a estudar, aqui, na sala ? É que temos de preparar a prova global de C.T.V. que é já amanhã.

- Se eu não vos incomodar, estejam à vontade.

E baixou o volume do televisor, enquanto as via arrumar a mesa de jantar, tirar livros, cadernos das pastas e organizar o que ele supunha que fossem os apontamentos das aulas. Mergulhou novamente na leitura da revista, mas a sua atenção começou a ser progressivamente desviada para o diálogo entre as raparigas no outro lado da sala.

- Tu já viste a quantidade de matéria que temos para estudar ? Estamos lixadas.

Teresa, a colega da filha, pareceu-lhe a menos atarantada, preferindo apostar claramente na organização da sessão de estudo.

- Onde é que tu estás pior ? Eu já estudei os calhaus, a hereditariedade e as hormonas. A maionese é das mais difíceis e para mim o DNA tem piada.

- Também gosto, mas vou ver-me à rasca na fotossíntese e tenho de estudar a glicólise.

- Eu deixo-te os meus copianços....

- Mesmo assim preciso de olhar para essa porcaria.

Aniceto ouvia-as e aquilo parecia-lhe mais a preparação para uma operação militar do que propriamente uma sessão de estudo na véspera de uma prova global. Pelo que ouvira, tinham chegado a um consenso e agora planeavam minuciosamente o dia de estudo. Embora tivesse percebido que uma parte da matéria estava estudada, percebeu também que os copianços continuavam a ser o que sempre foram, uma espécie de extintor guardado num qualquer recanto, cujo vidro deve ser partido em caso de emergência, mas de forma o mais silenciosa possível e sem deixar muitos estilhaços à vista.

- Então está combinado. Estudamos a fotossíntese de manhã, responde-se aos testes e logo se vê. A meiose podia ficar lá para o fim da tarde e depois do almoço mandávamo-nos ao DNA. Se tivermos tempo tentamos responder a algumas perguntas sobre a geologia, as hormonas e os cromossomas e depois, olha... seja o que Deus quiser.

Ora aí estava uma boa aluna em todo o seu esplendor. A rapariga, para além de aprender sem dificuldade, demonstrava uma capacidade de organização e desenrascanço apreciável. A filha estudava o suficiente, não era burra, mas estava muito longe de conseguir atingir aquele nível de eficiência organizativa.

- O que é que estás a fazer ? O esquema das fases da fotossíntese ? Não percas tempo. Toma lá o meu. Eu explico-te.

Aniceto começou a ficar embasbacado na fotólise da água e no NADP+ que se transformava em NADPH. Quando chegou à fosforilação do ADP sentia-se que fazia parte de um outro planeta e desistiu de continuar à escuta. Saiu da sala e foi tomar um café. Ao voltar, desligou a televisão e sacou da revista "Dinheiro & Direitos" que acompanhava a "Proteste". Interessava-lhe ler o artigo "Investir com Segurança". Pelo menos de depósitos a prazo, de certificados de aforro e de fundos monetários entendia ele. As miúdas, nessa altura, tentavam em conjunto responder às perguntas do que lhe parecia ser uns testes de um desses livros de preparação para as globais. Qual o composto regenerado durante o ciclo de Calvin ? Ouviu a filha ler em voz alta.

Depois do almoço decidiu aproveitar a tarde e ir tratar de uns assuntos que andava a adiar. Sentia-se um pouco melhor e estava farto de estar para ali sem fazer nada. Despediu-se das miúdas e saiu. Quando voltou, por volta das cinco da tarde, encontrou-as ainda no estudo.

- Então meninas, vamos lanchar e espairecer um bocadinho ?

- Já vamos pai. Deixa-nos acabar isto.

Muito bem, pensou, e foi sentar-se no sofá. Ligou a televisão, baixinho, fez o "zapping" habitual e decidiu deixar-se ficar no canal História. A filha e a colega, parecia-lhe, encontravam-se à volta de um problema qualquer. Qual é o genótipo do indivíduo quatro ? Discutiam hipóteses e se estavam de acordo avançavam. Caso contrário, procuravam encontrar a justificação no livro e nos respectivos apontamentos. Heterozigótico, recessivo, anomalia autossómica ou alelo eram algumas das palavras que, por vezes, o distraíam de um documentário sobre a Lei Seca na América. No relógio da sala batiam as seis horas.

- Ninguém tem fome ? Atreveu-se a perguntar.

- Só mais um bocadinho. Respondeu-lhe a filha sem tirar os olhos do caderno.

Sentiu-se uma espécie de homem invisível e voltou novamente a sua atenção para o documentário.

- Que tal ?

- Avança-se. Damos uma vista de olhos pela glicólise ?

- Mas eu não estudei...

- Responde-se às perguntas e tiro-te as dúvidas. Já viste a matriz ? Não é a matéria toda.

Adeus lanche, pensou Aniceto. Levantou-se e foi para a cozinha. Preparou-lhes umas sandes, um copo de sumo e meteu tudo num tabuleiro.

- Enquanto estudam, comam qualquer coisa.

Embora notasse um vago sinal de contrariedade quando as obrigou a arranjar um lugar vago na mesa, conseguiu ouvir um obrigado que não escondia a angústia a que aquelas raparigas estavam sujeitas numa véspera que, certamente, não seria a primeira ou tão pouco a última de algumas outras vésperas que ainda estavam por vir. Enquanto mastigavam e davam uma primeira vista de olhos às perguntas que iriam responder, Aniceto apercebia-se, talvez como nunca antes se dera conta, do que era, hoje, a vida de um aluno no Ensino Secundário. À primeira vista, parecia-lhe que as coisas não tinham mudado tanto como se apregoava desde que ele acabara o seu curso complementar do liceu há quase trinta anos. Alguns dos programas, julgava, eram diferentes. Os livros eram mais coloridos, possuíam mais esquemas e eram graficamente melhor produzidos. Os jovens vestiam-se e comportavam-se de forma mais aberta e irreverente. Os professores, tal como os adultos em geral, talvez fossem menos distantes e autoritários, mas isso não mudava substancialmente o sofrimento inútil dos jovens que hoje, tal como ontem, se continuam a debater com um sistema educativo rígido e um conjunto de tarefas que pareciam mais um conjunto de ritos adequados a uma cerimónia iniciática que propriamente um desafio capaz de contribuir para que se pudessem tornar gente mais decente e capaz. O que é que a filha e os colegas beneficiava com sessões de estudo como aquela a que ele assistira? O que aprendiam? Qual a utilidade do conhecimento assim adquirido? Eram estas, afinal, as questões que ele colocara, timidamente, a si próprio enquanto fora estudante num liceu e depois numa Faculdade.

As miúdas agora tinham mudado de registo. Do Calvin passaram para o Krebs e aos alelos seguiam-se, agora, as coenzimas. Como gostaria ele de ter ali à mão um gravador que lhe permitisse obter uma cassete para enviar ao Ministério da Educação com algumas perguntas sobre o que se entende por qualidade da educação escolar, a necessidade do sofrimento para crescer, a importância da escola na preparação para a vida ou, simplesmente, a influência da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão no modo como se concebe, ensina e avalia nas escolas do Ensino Secundário que temos em Portugal. Mesmo conhecendo a queda do actual ministro da Educação para escrever cartas públicas em jornais de grande tiragem, duvidava que alguém fosse capaz de justificar o que ele vira e ouvira, naquela tarde, passada na sua sala de estar.

Depois de ter mandado a filha para a cama às duas horas da manhã, portou-se como sempre o fazia quando ela era ainda uma criança. Beijou-a e aconchegou-lhe a roupa da cama. A miúda já tinha adormecido, mas mesmo assim desejou-lhe bons sonhos, o que ele, nessa noite, duvidava que fosse possível.

Ariana Cosme
Rui Trindade
Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto


  
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Edição:

N.º 103
Ano 10, Junho 2001

Autoria:

Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto
Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto

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