Na última "Página", e "pirateando" E. Prado
Coelho, apropriei-me do neologismo que servia, então, de título
à crónica respectiva e que hoje aqui continuo. O neologismo oferecia-me
algumas potencialidades semânticas para sugerir algum dos significados que
é possível surpreender na expressão da actividades dos "grafittistas",
personagens que ultimamente adquiriram alguma notoriedade pública, não
tanto porque terão multiplicado de forma sensível as suas actividades,
mas mais porque passaram a ser vistos como agentes de desordem e de malefício
público por parte de qualificados políticos de direita.
O neologismo avocado serviu nesse momento para enquadrar
um episódio, ocorrido numa escola secundária, onde uma cuidada
pintura mural colectiva tinha sido substituída por "grafittis"
da autoria impetuosa de um aluno.
Se hoje retorno ao episódio, não é
obviamente para assinalar o mérito da iniciativa do artista solitário,
mas para dar conta de algum questionamento que o episódio comporta. O
que em primeiro lugar nos desafia é o próprio desafio que o gesto
destruidor contém. O artista solitário não cuida de procurar
outro espaço disponível, uma parede alternativa, nem espera que
o C.E. sugira outras possibilidades como prometera. O que o episódio
sugere é que a coexistência não é possível:
a coexistência entre um mundo escolar idealmente organizado com actos,
funções, posições e disposições regulares
e previsíveis, como o motivo do painel pictórico inculcava, e
um mundo necessariamente não escolar, um mundo imprevisível, povoado
de seres impetuosos, caprichosos, tumultuosos, onde o tempo e o espaço
não estão (ainda) ou não estarão (nunca) sujeitos
a regulações colectivas e, portanto, abstractas, como as quis
Kant e toda tradição racionalizadora do mundo moderno. Os tempos
sociais da escola são hoje cada vez mais impacientes na exacta medida
em não podem fazer a abstracção da experiência quotidiana
que os alunos transportam consigo, o que, contraditoriamente leva a escola a
acentuar os mecanismos de controlo, condicionamento e disciplinarização.
Tenha-se em conta, ademais, que os tempos e os espaços sociais dos "grafittistas"
são, por norma, tempos e espaços sociais desestruturados no sentido
de que não obedecem a lógicas projectuais instrumentadas.
Atente-se, em segundo lugar, numa outra dimensão
do desafio, na da afirmação do artista solitário contra
os valores colectivos e formais da pintura que destrói. Parece fora de
dúvida que a actividade dos "grafittistas", ao exprimir-se
prioritariamente nos espaços públicos, pretende ser uma forma
de afirmação subjectiva, que tanto visa veicular valores simbólicos
de identidades alternativas à expressão "oficial" da
arte, como romper com uma condição de anonimato a que o baixo
grau de integração na lógica escolar o condiciona. A prática
do "grafitti" deve, então, entender-se como um gesto de emancipação
da catacumba escolar, uma forma de auto-estima que busca sobreviver aos efeitos
selectivos do processo escolar e nesse sentido essa expressão cumpre
de forma eminente aquilo que é a função essencial da arte:
a transformação e a redenção do quotidiano, com
tudo o que esse quotidiano tenha de negação, de humilhação
e de exclusão. Por isso, os "grafitti" podem recuperar o seu
sentido pedagógico, ser uma bandeira de identidade, um espaço
de mediação e de denúncia.
Manuel Matos
Universidade do Porto
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