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Mil palavras sem sentido

Leiam, primeiro, o texto do Paulo Melo no "Em Foco". Reconhecerão que só o "amor à camisola" permite opinar em Junho. Também as três crónicas escritas pelo Jacinto Rodrigues em 2008, publicadas neste número, mostram que o pouco tempo que nos sobra permite ainda sonhar. A experiência dos últimos dez anos diz que Junho e Julho são os meses em que é mais difícil reunir, a tempo, os materiais para produzir a Página da Educaÿão. Junho é mais difícil que Julho. Mais difícil porque mais sobrecarregado de afazeres pouco ou nada gratificantes. Mais leve Julho porque é ainda possível ir buscar o resto da energia ou a energia que resulta de sonhar com a paragem que se anunciar. Foi neste contexto, nada cómodo e pouco dado à expressão dos sentimentos, menos ainda à criatividade, que iniciei a escrita destas mil palavras sem sentido. Escolhi como tema a exigência que se faz hoje à escola para que "ensine" a cidadania. À medida que ia escrevendo aumentava o meu desconforto. Seguramente, para nós professores, este não é um bom mês para se escrever, ler e pensar.

Quando se escreve escreve-se sempre para alguém. Ou para "alguéns". Por isso não consigo escapar a esta impressão de vos ir importunar e maÿar com um texto fraco, sobre a questão da cidadania. Do ponto de vista formal, a página três fica bem com mil palavras. Em vez do texto sobre a cidadania, deixo aqui um texto sem sentido, um convite à preguiÿa e ao amolecimento, uma maneira de vos fazer companhia. Rigoroso na forma, porque ao todo são mil, apenas mil palavras sem sentido.

Foi publicado um novo dicionário. Tem novas palavras. Palavras que querem mostrar a nossa pós-modernidade. O efémero passa a ser definitivo. A classe média vê o seu vocabulário vagabundo consagrado em dicionário. Os dicionários sempre consagraram a linguagem da classe dominante. Não deixa de ser interessante analisar a linguagem fixada, neste novo dicionário, nesta perspectiva da linguagem das classes sociais dominantes. Pode até dar-se o caso de que a novíssima classe média portuguesa se tenha tornado a classe dominante no país. Os meios de comunicaÿão social, que de aparelhos ideológicos do Estado se passaram para aparelhos ideológicos dos donos do mercado, também dão cada vez mais destaque aos jovens da classe média. O neoliberalismo substituiu o cidadão pelo consumidor. Nas sociedades neoliberais o poder (só na aparência) tende a ser dos consumidores. Sendo os jovens os consumidores do futuro, é natural que sejam promovidos e reconhecidos. Dicionário e meios de comunicaÿão parecem andar de mãos dadas neste reconhecimento.

O dicionário não considerou palavras que nos são hoje fundamentais. Cá por mim ando aflito com algumas. Que eu saiba, as televisões ditas genéricas já não são órgãos de comunicaÿão social. Optaram pelo entretenimento. A informaÿão não vende. Vende quase tão pouco como a formaÿão e a cultura. Se a informaÿão não vende é natural que tenham enveredado pelo entretenimento com vénia (aparente) pelo gosto do público. Mas sendo verdade que enveredaram pelo entretenimento, não deixa de ser verdade que ainda subsiste, pelo menos a nível retórico, uma mistura de informaÿão e entretenimento. Os que entretêm ainda se dizem jornalistas e até jornalistas/comentadores. Gostaria que o novo dicionário considerasse esta situaÿão. Proponho que se passe a português do século XXI a palavra "Infoteinement" querendo com ela significar qualquer coisa como "casamento entre informaÿão e entretenimento" ou "a forma como trabalham os meios de comunicaÿão na sociedade regulada pelo mercado".

Outra palavra que gostaria de ver chapada (não no sentido de pancada em cheio, bofetada, mas sim no sentido de gravada, figurada) no novo dicionário, é a palavra "Politeinement" querendo com ela significar qualquer coisa como "casamento entre a política e o entretenimento". Nós vivemos finalmente na sociedade do lazer. De forma harmoniosa todos se preocupam com a nossa alegria e boa disposiÿão. Todos nos entretêm. Os meios de comunicaÿão social entretêm-nos. Os políticos, os do governo e os da oposiÿão, esforÿam-se por nos dizer o que queremos ouvir, por nos entreter. Esforÿam-se na provocaÿão. Às vezes física. Leiam, por exemplo, a crónica da Hália Costa Santos, publicada neste número.

É preciso que o novo dicionário trate de outro conceito que faz cada vez mais falta. É necessário definir com rigor, nestes tempos do efémero, o que devemos entender por "Democracia Virtual". Confesso que ando a aplicar estas palavras, cada vez com mais frequência, mas de forma cada vez mais insegura. Preciso de ajuda para a clarificaÿão da definiÿão.

O problema maior até não será quando já temos uma proposta de palavra para exprimir qualquer coisa. Problema é a falta de palavras quando temos a ideia, o conceito. Que palavra usar para a ideia «muito canal para o mesmo canal»? E no entanto não é verdade que temos hoje muito canal para o mesmo canal? Não é verdade que temos muito texto para a mesma ideia? Não é verdade que a frustraÿão política leva a que o(a) frustrado(a) escreva dias, semanas, meses, anos seguidos para dizer o mesmo? Que palavra poderá o dicionário fixar para traduzir estas realidades? Eu sei. Também me lembrei dessa expressão. "Vira o disco e toca o mesmo". Mas lá está, precisamos então de uma outra palavra que sirva para dizer "por favor virem o disco e toquem algo de diferente". Uma palavra que exprima sem azedume o nosso imenso cansaÿo.

Casamento. Cá está uma palavra que dá para muita coisa. Quem disse que não dá? Parece-me no entanto desadequada para exprimir a ideia de «concentraÿão entre poder económico, político e mediático». Um casamento bem à italiana. E no entanto tal concentraÿão, nas mãos de um só ou de poucos, é uma das ameaÿas suspensas sobre as nossas cabeÿas. Por falar em casamento. Sabem que cerca de 30% das mulheres e homens com idades entre os trinta e os cinquenta anos andam em processo de divórcio? Quantos dramas silenciosos nas escolas! Com ou sem dor, renove-se o amor e as palavras.

José Paulo Serralheiro

  
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Edição:

N.º 103
Ano 10, Junho 2001

Autoria:

José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.
José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.

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