Fruto de um longo trabalho escolar, minuciosamente planificado e executado
durante as aulas, aquela parede da escola podia, finalmente, orgulhar-se de
ser uma referência educativa, ao contrário de muitas das suas parceiras,
que continuavam sujas de toda a sorte de rabiscos e dos muitos malefícios
das intempéries sucessivas... Aquela parede fora transformada numa magnífica
pintura mural.
Diz quem viu que se tratava de uma representação
verdadeiramente exemplar do que deve ser um mundo escolar perfeito: desde a
escolha do espaço pictórico (estrategicamente situado num lugar
de passagem interna dos alunos) à construção das cores,
à composição das figuras, à leveza, graciosidade
e simetria dos movimentos e à simplicidade insinuante dos gestos, ao
rigor e definição dos espaços e à limpidez de perspectivas,
tudo ali tinha sido pensado para ser um louvor permanente à escola a
caminho duma sociedade tão perfeita como ela.
Das cenas ali representadas, (alusivas, em grande parte, a
jogos colectivos), era o lado lúdico e recreativo que avultava, mas o
que todo o conjunto sugeria era a celebração da ordem e da disciplina,
o triunfo da harmonia pré-estabelecida e o arrebatamento místico
de quem vive o jogo como o prazer dum dever bem cumprido... Todo o intenso movimento,
que se dirigia para o alto, pretensamente dominado pela posse da bola, não
terminava claramente na posse da bola que, aliás, aparecia sempre fora
do alcance da mão: ia sempre mais além em busca dum azul que não
era deste mundo. Rapazes e raparigas cruzavam os seus gestos, mas tão
puros e tão distintos que nenhuma dúvida podia haver quanto à
sua função e à sua identidade neste mundo: de calças
ou calções, eles e de saias, elas, passavam a mensagem mais natural
que lhes cabe passar: a da diferença e a da complementaridade para sempre.
Um dia, um terrível dia em que chovera ininterruptamente
desde a véspera, entra um funcionário pela porta dentro do Conselho
Executivo, quase arrastando consigo um aluno:
- Este aluno acaba de destruir completamente a pintura da escola"!
- Como?
- Pintando por cima tudo o que lhe apeteceu...
- Por que foi que fizeste isso?
- Aquela pintura não me dizia nada. Aliás, provocava-me
todos os dias. Já viu o que é ter que olhar aquilo todos os dias?
Não podia mais....
Lembrava-se agora o elemento do CE que, dias antes, aquele
aluno, acompanhado de um outro, lhe tinha pedido, insistentemente, que lhes
arranjasse uma parede para fazer "grafitti". Que ia estudar melhor
o assunto, prometera.
Eduardo Prado Coelho, na sua crónica do dia 21/04 do
jornal "Público", fala-nos da "des-artificação"
como um processo de abastardamento da arte própria destes tempos de "democratismo
cabisbaixo", sem deixar de assinalar, ao mesmo tempo, "a força
explosiva do prefixo des". Não sei se o episódio em referência
cabe nos efeitos daquela "força explosiva do prefixo des".
Já tenho menos dúvida de que se possa atribuir um qualquer "democratismo
cabisbaixo" ao gesto de "des-artificação" que o
episódio representa... Tenderia a ver nele uma resposta premonitória
a anunciadas intenções de cercar os "grafittistas"...
Manuel Matos
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