Pensar a cidade contemporânea exige pensar a multiplicidade dos fluxos
de significações que a constituem. A heterogeneidade desses fluxos
(comunicacionais, políticos, econômicos, disciplinares, ritualísticos
etc.), bem como o seu impacto nas subjetividades contemporâneas, nos remetem
ao exercício de refletir e vivenciar a cidade como um dos espaços
privilegiado de educação.
Milton Santos (1997:83) define a cidade como o "lugar
em que o mundo se move mais, e os homens também". De acordo com
essa concepção, seria a cidade um dos lugares da educação,
pois, "quanto maior a cidade mais numeroso e significativo o movimento,
mais vasta e densa a co-presença e também maiores as lições
e o aprendizado" (Santos, 1997:83).
Assim, a cidade e seus fluxos seriam extremamente ensinantes,
pois, como uma arena cultural, possibilitaria a percepção das
diferenças, visto ser a densa rede de sociabilidade que a metrópole
contemporânea nos imprime uma esfera privilegiada para o aprendizado das
diferenças e problematização das desigualdades sociais,
historicamente presentes na formação social brasileira.
De modo geral, as crianças com as quais trabalhamos
demonstram uma ambivalência com relação à cidade
do Rio de Janeiro. São crianças oriundas das camadas sociais denominadas
populares, que via de regra possuem alguma autonomia de circulação
pelo seu entorno (favela, conjunto habitacional, ruas do bairro, centro e zona
sul da cidade). São crianças que desejam a cidade, querem conquistá-la,
mas a temem.
Hágada, José, Cecília, as crianças
"escolhidas" para ilustrar esse texto, são crianças
de 9, 10 e 7 anos respectivamente. Crianças que estudam em escolas públicas
municipais, que não se conhecem e que, apesar disso, "coincidentemente",
partilham percepções muito próximas sobre a cidade, isto
é, imaginam e tecem narrativas muito semelhantes sobre o Rio de Janeiro.
É importante ressaltar que as crianças residem
no bairro do Caju, que apesar de ser um bairro pobre, não é a
favela, "lugar muito ruim de morar", que tem "muita violência",
"tiros e não dá para brincar". Em suas casas, fora a
televisão (que todas gostam de assistir, especialmente os desenhos e
o programa do "Chaves") e alguns brinquedos que possuem, nada mais,
segundo elas, prende sua atenção.
Por isso, assim que resolvem as tarefas escolares, "se
mandam para a rua" para "jogar bola", "brincar de casinha",
"andar de bicicleta", "brincar de pique", "soltar pipa",
"trocar figurinhas". Hágada e José falam que adorariam pegar
o 210 (ônibus Caju-Centro) e dar voltas pela cidade, como muitos meninos
e meninas de sua idade fazem. Falam, porém, que "esses meninos não
ligam para nada", que "não estudam", "ficam o dia
todo zoando na rua". Explicam que, "se a mãe soubesse, deixaria
de castigo", que "bateria de cinto", porque "eles não
são meninos de rua".
Assim, é a rua o local privilegiado de fruição
dessas crianças, espaço que um bairro popular, apesar da "voracidade
urbana", ainda oferece aos seus moradores, especialmente às crianças.
A rua na cultura urbana tem sido um universo de múltiplos
eventos e relações. A expressão "alma da rua"
significa um conjunto de veículos, transeuntes, encontros, trabalhos,
jogos, festas, espaços do sagrado e do profano. São vias onde
a vida social acontece ritmada por fluxos constantes, que às vezes tudo
mistura, formando mosaicos, bricolagens inesperadas, jogos de luzes e sombras
onde o mistério e a sedução inúmeras vezes irrompem
do fluxo aparentemente linear do cotidiano urbano.
A rua na vivência urbana: um "microcosmo real"
de espaços e relações, que tem a ver com repouso e movimento,
ordem e desordem, intimidade e exposição. A rua é circulação,
artéria viva do bairro, da cidade. Espaço onde as crianças
constroem aprendizagens múltiplas que nem sempre são reconhecidas
e ampliadas pela instituição escolar.
As crianças ao tomarem a rua como espaço privilegiado
de socialização, estavam reinventando o "pedaço",
isto é, um espaço material e simbólico de constituição
de suas subjetividades, de suas histórias e memórias.
Durante as entrevistas, as crianças, ao serem convidadas
a registrar, através de desenho, as imagens da cidade que mais apreciavam,
isto é, as suas "paisagens preferidas", todas fizeram questão
de representar paisagens conhecidas por elas que, de acordo com as suas memórias,
seriam locais impregnados de vivências pessoais, "mapas afetivos"
de sua circulação pela cidade.
Pensar a relação das crianças, habitantes
de uma cidade com suas paisagens, pensar sobre as imagens escolhidas por essas
crianças, implicam em ver a cidade além da sua aparente funcionalidade.
Implica em privilegiar especialmente as dimensões (des)educativas da
cidade.
Que perguntas nós, urbanos contemporâneos, fazemos
à cidade, à favela, às ruas, aos logradouros públicos
e privados que constituem as cartografias (in)visíveis nas quais nos
alfabetizamos?
As crianças, ao falarem da cidade, longe de se referirem
a traçados urbanos abstratos, carregam-na de sentido simbólico,
testemunham sistemas mentais em confronto no tempo urbano, explicitam não
apenas uma relação perceptiva da cidade mas também efabuladora
que mistura os tempos presente e passado, as histórias individuais às
coletivas.
Nessa medida, a cidade pode ser lida como um texto, uma obra
em aberto que se oferece _ "Decifra-me ou devoro-te" aos seus
habitantes-escribas/leitores.
Ao discutir os tensionamentos da cidade na alfabetização
dos "pequenos" das (pré) escolas, estamos conceituando alfabetização
em seu sentido ampliado, ressignificando uma leitura stricto sensu do
termo, isto é, o entendimento da alfabetização para além
da aquisição de habilidades mínimas, instrumentais, que
possibilitam a transcrição e a decodificação da
linguagem escrita.
Fundamentadas em Freire, defendemos que aprender a ler e a
escrever é, antes de mais nada, aprender a ler o mundo, compreender o
seu contexto, interrogá-lo em sua aparente linearidade. Fundamentadas
nessas premissas defendemos que a cidade alfabetiza ao atravessar os sujeitos
com a complexidade de seus fluxos que nunca se esgotam. Assim, o "ambiente
alfabetizador" que a cidade oferece (e que apesar de invadir a sala de
aula, é tantas vezes interditado ou esvaziado de potência nela)
deveria ser um pretexto indiciário para a afirmação de
uma alfabetização cidadã.
Maria Teresa Goudard Tavares
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Pesquisadora do Grupo de Pesquisa de Alfabetização das Classes
Populares da UFF/RJ
-
SANTOS, Milton. Técnica, espaço e tempo: globalização
e meio técnico-científico informacional. São Paulo,
Hucitec, 1997
-
FREIRE, Paulo. Educação e mudança. São
Paulo, Cortez, 1979.
FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler em três artigos
que se completam. São Paulo, Cortez, 1986.
FREIRE, Paulo e MACEDO, Donaldo. Alfabetização: leitura
do mundo, leitura da palavra. São Paulo, Paz e Terra, 1990.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Esperança. São Paulo, Paz
e Terra, 1993.
|