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Será um burro totalmente imprevisível?

Pode ser essa mancha na parede que julgamos sombra e quando aproximamos a mão se revela um moscardo. Pode ser o braço que durante o sono deitamos fora com violência e se revela ser o nosso. Pode ser a amiga para quem corremos de braços abertos e se revela uma desconhecida (...) continuamos a viver com esta quase certeza de que o que nos cerca, o que lemos e ouvimos, são essencialmente aparências.

O que parece certo foi termos vivido um dos mais longos invernos de que temos memória. E não sei em que medida, esse estado do tempo a que não estamos habituados, terá contribuído para que se instalasse em Portugal este abatimento e desânimo - aparente? - em que vimos vivendo nos últimos tempos.

A verdade é que de repente caiu o Carmo e a Trindade. Não há jornal, rádio, televisão, comentador, analista político, político propriamente dito, político candidato a político, intelectual, quadro dirigente, sindicalista, cientista ... que não tenha descoberto que nós os portugueses somos os mais miseráveis entre os mais miseráveis, os mais atrasados e desleixados entre os mais atrasados, os mais desgraçados dos desgraçados, os mais ignorantes, os piores trabalhadores, os mais desorganizados, os menos profissionais, os mais tristes, os mais violentos entre os violentos, os mais sujos... enfim os "mais feios, porcos e maus".

A acreditar no discurso dito e publicado - da aparência? - o mundo que nos cerca é o paraíso e Portugal o inferno. Os EUA de Bush - a julgar pelo que insinua o grande cérebro José Manuel Fernandes - é uma encosta paradisíaca onde se deitam languidamente as mais belas virgens sem pecado e os efebos que nos abandonaram antes de se converterem ao crime - enquanto Portugal não passa da cloaca da Europa ainda por cima mal gerida pelo descuidado Sr. Guterres. O capitalismo neoliberal, que globalmente governa o mundo, é de uma bondade e doçura enorme para os pobres povos do mundo. Só nós portugueses, relapsos em fazer reformas, isto é, em tirar a gordura ao Estado e entregá-la em torresmos aos donos da propriedade e do mercado é que vivemos, por castigo, nesta agonia e nesta maldita sociedade que se desfaz e escorre miséria moral e material.

Esta situação de descalabro é de tal monta que até os senhores bispos e cardeais decidiram vir a público publicar. É que o mal em Portugal nada tem a ver com a exploração da maioria por uma ínfima minoria de gabirus. O mal em Portugal não é o miserável salário mínimo com que vive uma boa parte das trabalhadoras e trabalhadores portugueses. Não é um problema de reformas miseráveis, de economia paralela, de fuga aos impostos, de terras de pousio. O problema não é terem os professores dificuldade em convencer muita juventude em investirem nos estudos quando a miudagem já sabe o mercado de trabalho e a miséria salarial que os espera. O problema não é a incerteza do trabalho, a marginalidade e a precariedade como condição de aumento da produtividade... nada disso.

Os problemas, os grandes problemas são outros. O problema maior em Portugal é de segurança. É um cidadão pacato querer ir beber um copo à noite e não poder requisitar dois polícias para o acompanharem na expedição nocturna. Problema é ter de se deslocar para o trabalho em transporte público, sujeito a ser assaltado por um jovem bandido, e o Estado não se preocupar em lhe disponibilizar um carro blindado para semelhante deslocação. Problema é ser guarda-nocturno e não ter vários policias para o proteger. Problema é ser polícia e não ter seguranças que o protejam e subsídios de risco a condizer. Problema é um cidadão(a) ter um(a) amante e não poder exigir ao Estado que lhe coloque pelo menos um polícia a guardar as costas não seja caso que chegue o(a) legitimo(a) e se dê mais uma tragédia capaz de ser longamente explorada no telejornal da noite como prova provada da triste insegurança que reina em Portugal. Estes sim são problemas que enformam a actual sociedade portuguesa. Mas se fossem só estes!

Problema, gravíssimo, prova da grande degenerescência moral é a pílula do dia seguinte. Grave, muito grave, é a distribuição desavergonhada de preservativos, seringas e outros instrumentos de perversão moral. Longe vão os bons tempos da boa moral e da santidade. Longe vão os tempos das tiras que esmagavam os seios, das roupas largas e compridas, das batas, dos uniformes, a esconder as formas. Agora, desnorte do desnorte, como se já não bastasse a tentação do natural aumentam tudo com silicone! Que nos valha Deus e os santos bispos!

É neste estado de "crise", de mal estar e de constrangimento que chegamos à véspera de mais um 1º de Maio.

Aposto que estes trabalhadores inconscientes e irresponsáveis, que se vão meter a comemorar o 1º de Maio, se vão esquecer dos grandes problemas que afligem a nossa pátria. Aposto que se vão queixar que ganham pouco. Aposto que se vão esquecer de que é preciso construir o futuro e que o futuro já não é o século XXI mas o século XXII. Aposto que se vão esquecer que o futuro - que por acaso nunca é presente - exige o sacrifício dos trabalhadores do presente.

Grandes são os contrastes das preocupações das pessoas, dos tempos e dos povos. Celebramos o dia do trabalhador, do assalariado, ou do trabalho? As duas coisas? A nós trabalhadores que vivemos do nosso trabalho o que nos deve preocupar? As nossas preocupações, o nosso desconforto tem alguma coisa a ver com o discurso que passa nos meios de comunicação social nos dias de hoje em Portugal?

Permitam-me que chame em meu auxilio uma citação do poeta brasileiro Alexei Bueno feita recentemente pelo escritor José Eduardo Agualusa num belo texto seu. Diz assim: "todos os tolos são muito perigosos porque, à semelhança da barata americana, não seguem um rumo. Os burros existem e é difícil enfrentá-los. Um canalha em princípio obedece a uma estratégia. Estudando essa estratégia podemos combatê-lo. Um burro, não. Um burro é totalmente imprevisível. A barata americana, bicho grande, estúpido, voa à toa, atira-se contra as paredes, as coisas e as pessoas, de forma que quem estiver por perto arrisca-se a acabar com ela emaranhada nos cabelos. Se eu vejo uma barata americana numa sala vou-me logo embora. Faço o mesmo quando dou com um burro. Você aceita um conselho? Nunca discuta com um imbecil."

Talvez porque as aparências iludam eu não estou totalmente de acordo com o poeta Alexei Bueno num ponto. Diz respeito ao burro. É do conhecimento histórico que os engenheiros de estradas romanos mandavam um burro à frente para que ele fosse traçando o melhor percurso. Este conhecimento leva-me a desconfiar que até os burros têm a sua estratégia. Difícil é descobri-la. Qual será a estratégia de quem faz comunicação e opinião hoje em Portugal? Têm os empresários portugueses uma estratégia? Ou Alexei Bueno tem razão? Se têm qual é? Eis um grande desafio posto aos trabalhadores portugueses neste mês de Maio.

Possivelmente mais do que comemorar o 1º de Maio, talvez seja urgente descobrir quais as estratégias dos burros que dominam a nossa sociedade e como eliminar a grande barata tonta americana. Talvez. Sei lá.

José Paulo Serralheiro

  
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Edição:

N.º 102
Ano 10, Maio 2001

Autoria:

José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.
José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.

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