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António José Forte - ou uma "poética" de horas vitalícias

Se ainda fosse vivo, António José Forte (1931-1988) teria completado em 10 de Fevereiro setenta anos de idade. Não era muito, mas partiu antes de tempo e desde sempre ficou ligado ao movimento poético surrealista português. Claro, é hoje um nome bem esquecido, apesar de logo após a sua morte ter sido publicado Corpo de Ninguém (1989, onde se reuniram todos os livros que deixou publicados. Mas devo dizer, antes de mais, que na propositada subversão das ideias e dos sentimentos, este Poeta soube criara uma "utopia" para uso próprio, através da construção imaginística, da redundância de alguns vocábulos, da intenção nuclear de a palavra se subordinar, na intervenção e norma surrealista, à "ditadura do espírito", e proclamar: "Dente por dente: a boca no coração do sangue: / escolher a tempo a nossa morte e amá-la". E por esse plano inclinado a poesia de António José Forte se desdobra, desde Uma Faca nos Dentes e Caligrafia Ardente, em textos e poemas que se arvoram, em redobrada surpresa e alegria, como punhal arremetido contra o cerco que tanto nos bloqueia, no desejo libertador de atenuar o peso do quotidiano, reabilitá-lo na sua justa dimensão e conferir-lhe outro sentido discursivo e poético: "Sai de novo para o mundo. / Fechada à chave a humanidade janta. / Livre, vagabundo / dói-lhe um sorriso nos lábios, canta".

Mas no sentido dessa sempre procurada coerência entre uma certa perversão do "discurso" poético e a utopia ideológica, anarquizante e ainda claramente surrealista, na lição aprendida sobretudo em Breton, a poesia de Forte é, nessa intenção nitidamente bretoniana, um modo de afirmar que o acto de escrever é "ainda aquilo que sabe fazer melhor", mas dizer também em consciência haver "gente que nunca escreveu uma linha e fez mais pela palavra que toda uma geração de escritores". E, nessa forma directa e interveniente, o que percorre a sua poesia demarca-se ainda nos limites imediatos de uma evidente devastação, insubordinação ou rebeldia do próprio "discurso": "Não estranheis os sinais, não estranheis este povo que oculta a cabeça nas entranhas dos mortos. Fazei todo o mal que puderdes e passai depressa".

No prefácio da 2ª. edição de Uma Faca nos Dentes (1983), Herberto Helder, seu amigo de muitos anos e companheiro em horas de aventuras pela vida fora, afirmava que "a voz de António José Forte não é plural, nem directa ou sinuosamente derivada, nem devedora. Como toda a poesia verdadeira, possui apenas a sua tradição. A tradição romântica, no menos estrito e mais expansivo e qualificado registo". E isso mesmo claramente se pode observar em Corpo de Ninguém, súmula poética só possível pela amizade e camaradagem de alguns amigos, mas onde a carga amorosa dos seus poemas se associa ao desejo de fazer sobressaltar ou despertar os outros pelos caminhos dessa mesma perversão e rebeldia, como no seu belíssimo poema intitulado Azuliante (1984): "Meu amor / países pátria têm todos um nome / de letras imundas que não é para escrever / Se ainda podes ouvir o búzio da infância / ouvirás com certeza o sinal de partir / (...) no meu livro de horas deste século, / está escrito que o homem livre / fará o seu aparecimento / sob a forma de um cometa de cauda faiscante", e por essa viagem estelar, na rosa dos ventos de outras secretas navegações, o Poeta de Caligrafia Ardente avança de rosto aberto e peito feito contra todas as pátrias, mas viverá o seu "dia a dia amante" nas horas vitalícias de um pessoal canto. Não ainda na forma dessa mesma ardente caligrafia que depois se inscreverá como último recado, antes no subtil e delicado fio telegráfico de outros precipícios, numa ode que evocará para sempre um rosto adolescente: "No relógio das horas violentas / na câmara escura / onde o meu nome deve ser lido aos gritos".

Ora, por todos esses "pontos magnéticos de analogia imaginística ou verbal, ou por enlaces rítmicos", de que fala ainda Herberto Helder, se desvenda o tom e o toque de António José Forte possuir uma linguagem peculiar na poesia surrealista portuguesa e ser uma das poucas "vozes comunicantes" que por dentro soube escrever o verbo e o canto desse seu discurso poético de algum trágico e utópico sentido pessoal, mas não é "o canto de velha toupeira / audível nos intervalos do terror", antes prevalece esse desejo de "amor louco" que se reinventa de outras dores sentidas por constelações ou ondas caligráficas do próprio mapa-mundo em que tudo ficou inscrito. E por aí se ergue esse código da vida, que o faz declamar num dos poemas de Caligrafia Ardente: "No ano primeiro do fim da melancolia / enquanto os dias e as noites se devoram / é por mim que escrevem os aviadores / com a minha letra solitária / sobre a multidão no deserto". Mas nesse registo de imagens que se encadeiam quase no ritmo da própria respiração, existe na poética de António José Forte uma plural caligrafia cruzada pelas diferentes pátrias destruídas, nomes e memórias que despertam outras paixões ou denunciam diferentes "segredos, razões e crimes contra o estado de oriente a ocidente". E tudo se entende como fantasmas dentro de navios que percorrem violentos e tempestuosos "mares de ninguém" (e de toda a gente, é certo), mas no sentido desse discurso justificar a navegação que se faz entre a vida e a morte. Por último, sim, digamos que, na sua forma de "desobediência civil" (que é um dos poemas inéditos que aparece em Corpo de Ninguém) revelada em muitos dos seus poemas, se poderá ainda descobrir uma espécie de "música astral" para povoar antigas noites de terror ou silenciar "no coração do mundo / esse pranto à flor da pele".

Relida e descodificada linearmente a sua "caligrafia", podemos dizer que a poesia de António José Forte, na mais clara e revivificante intenção surrealista, se afirma como o gesto derradeiro de quem, na alterosa vaga de emoções e palavras, reflectiu no seu "grande ecrã" tudo o que de mais essencial e profundo se entende, prevalece e morre. Mas podemos dizer com Ramos Rosa que, na poesia do Poeta de Corpo de Ninguém, "avulta um sentido trágico a que soube dar expressão dentro do próprio espírito surrealista". Assim, se não entendermos a tempo o sentido da sua lição, a poesia de António José Forte continuará a ser conhecida apenas de alguns irmãos colaterais que, na sua barca discreta e solitária, sonharam como ele emendar o mundo ou quiseram refazer a alegria iluminada por outros sóis. Mas a culpa será sempre nossa e não deles, é evidente.

Serafim Ferreira
Crítico literário

António José Forte
CORPO DE NINGUÉM, Poemas.
Ed. Hiena / Lisboa, 1989.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 101
Ano 10, Abril 2001

Autoria:

Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.
Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.

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