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Novo paradigma no acesso à profissão docente

Conjunturas excepcionais na vida das sociedades deixam naturalmente marcas quer no campo legislativo quer nas práticas das pessoas e dos grupos. Foi o que aconteceu, entre nós, no campo educativo. A democratização e expansão do ensino na década de setenta e em parte da década de oitenta obrigaram ao recurso a práticas justificadas pela conjuntura excepcional que então se viveu. O que é necessário, alterada a situação, resolvidos os problemas conjunturais que decorreram da abertura da escola a todas as crianças e jovens, é que se possa repensar práticas e modos de agir procurando responder à nova conjuntura e às novas necessidades.

Um dos aspectos que me parece importante repensar está relacionado com a formação inicial dos educadores e professores e, de modo particular, com o ingresso na profissão. Volto pois a repetir algumas opiniões que venho defendendo nos últimos quinze anos. E justifica-se esta repetição pelo facto de estarem a decorrer negociações entre o ministério e os sindicatos com implicações, a meu ver, nestas questões.

O meu ponto de vista é, como dizem alguns, pão comido, isto é, fácil, evidente. A entrada na profissão docente precisa com urgência de um novo paradigma. Deve ter um grau de exigência e de responsabilidade semelhantes ao que ocorre, por exemplo, na carreira médica, na magistratura ou noutras actividades em que estão em jogo, na actividade profissional, de forma directa, as pessoas, os seus direitos fundamentais e as suas vidas. Nestas profissões existe um cuidado especial quer na formação inicial dos futuros profissionais - que tem de ser pensada tendo em conta o tipo e a qualidade do desempenho que se pretende - quer no modo como se iniciam profissionalmente, quer ainda na distribuição de funções e responsabilidades ao longo da carreira e no permanente aperfeiçoamento profissional. Requerem uma entrada na profissão acompanhada, orientada e sustentada por companheiros de trabalho mais experientes.

No período de expansão da nossa rede escolar foi necessário recorrer a muita improvisação e a meios mínimos de funcionamento. Essa realidade aconteceu quer no que respeita às instalações e equipamentos quer no recurso à contratação de pessoal administrativo, auxiliar e docente. A maior parte do sistema foi montado com base na ideia do improviso e do provisório. A realidade hoje é outra. É necessário pormo-nos de acordo sobre novos paradigmas profissionais. E é em torno da construção destes novos paradigmas que se pode construir a unidade de acção da classe e restituir-lhe algum prazer e confiança na actividade educativa.

Não vou aqui voltar a referir o que hoje se deve exigir à formação inicial de educadores e professores. A não ser repisar duas exigências. A primeira é a necessidade de encontrar mecanismos que garantam que o conteúdo de tais formações esteja adequado aos fins do ensino e às necessidades de formação global dos alunos - jovens e adultos - e não seja desenhado em função dos interesses particulares das instituições e do pessoal responsável pela formação inicial. Esta exigência aplica-se, e tem consequências, quer no ensino superior público quer no privado. A segunda exigência é um cuidado especial nas condições de acesso aos cursos da via de ensino. Não é tolerável que as portas de entrada das instituições formadoras estejam escancaradas e sejam de livre acesso aos candidatos que se apresentam com médias negativas de acesso, incluindo classificações de cincos e seis em disciplinas fundamentais como Português.

Não acredito num sistema de formação que consegue que um aluno ou aluna que ingressa num curso da via de ensino com um cinco a Português se apresente quatro anos depois candidato profissionalizado a professor(a) com média final de dezassete. No meu tempo isto era uma impossibilidade prática. Presumo que temos todos a responsabilidade de pensar a formação inicial com maior seriedade. A autonomia das escolas, de todos os níveis de ensino, só se justifica em instituições abertas e cooperativas e não em instituições fechadas e corporativas.

Também já não tem qualquer justificação o modelo de recrutamento de docentes e a forma como se inserem na profissão. O que as actuais negociações entre o ministério e os sindicatos mostram é que ninguém quer romper com o modelo e a lógica que vem dos anos setenta e oitenta e que se podia eventualmente justificar, naquele tempo, pela situação de emergência e de provisoriedade já referida. O que hoje separa os sindicatos do ministério é apenas o tempo de permanência dos jovens candidatos à docência na situação de contratados a prazo. Os sindicatos exigem menos tempo para adquirir a vinculação e o ministério procura dilatar esse tempo. Os sindicatos defendem dois ou três anos de serviço como tempo máximo na situação de não vinculado e o ministério fala de seis anos para os jovens profissionalizados e de doze para os não profissionalizados. Ora o que importa é substituir de forma radical o modelo.

Defendo desde há muitos anos um novo paradigma. Um paradigma que ponha cobro ao liberalismo selvagem, e por vezes cruel, que está na base do actual modelo de entrada na profissão. É necessário pôr em causa vários dos pressupostos em que acenta o actual modelo. Assim, são recusadas todas as situações de trabalho provisório no ensino. Não se aceita que o acto educativo possa ser realizado por pessoas não profissionalizadas. As respostas a necessidades ocasionais - faltas por doença, maternidade, etc. - devem ser cobertas por docentes profissionalizados que façam parte de um quadro, organizado geograficamente, que responda a essas necessidades. É necessário criar condições para impedir o concurso de candidatos que procuram o ensino apenas como recurso transitório enquanto não encontram o emprego que pretendem.

O novo paradigma acentará em quatro pilares fundamentais. O primeiro obriga a que se resolvam - num prazo curto - as situações dos docentes que estando já no sistema têm situações de carreira por resolver (habilitação suficiente, profissionalização, etc.). O segundo é aceitar que não há acesso provisório à profissão. A entrada faz-se a um quadro que confere direitos e deveres que importa regular. O terceiro é reconhecer que só há duas formas de se ter acesso à profissão: ou se é profissionalizado e se entra directamente no quadro ou não se possuindo a profissionalização se entra directamente em lugar de estágio profissional. Em caso algum se aceita a possibilidade de exercer a profissão docente, seja por que tempo fôr, a não profissionalizados. O quarto é que a entrada em funções deve ser devidamente acompanhada, enquadrada e supervisionada por colegas com experiência e acompanhada pelos órgãos pedagógicos.

O novo edifício constrói-se sobre estes pilares. Da minha parte está pensado, mas aceitam-se sempre alterações desde que melhorem a qualidade do desempenho profissional e da educação e ensino. O que não se aceita é a proposta do ministério que, no limite, considera como normal que uma pessoa exerça a profissão durante um terço da carreira - 12 anos - sem se vincular, isto é, sem se profissionalizar. É caso para perguntar: profissionalizar-se depois de doze anos para que? O que é também inaceitável é que todos os anos entrem e saiam do sistema pessoas que vêm experimentar a profissão (e quantas vezes a paciência e o saber dos alunos) desprezando o ministério anualmente o direito das pessoas e das escolas à estabilidade profissional e a experiência entretanto adquirida.

Se o ministério não tem o sentido da responsabilidade, tenham-no nestas negociações os sindicatos e digam com clareza que o modelo actual se esgotou e que se exige o grande salto em frente, para bem dos professores e da profissão, mas sobretudo do direito dos alunos a um ensino de qualidade.

José Paulo Serralheiro


  
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Edição:

N.º 101
Ano 10, Abril 2001

Autoria:

José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.
José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.

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