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Regulamentar, Meu Caro Watson!

Estamos em época de revisão do Estatuto da Carreira Docente dos Educadores de Infância e dos Professores do Ensino Básico e Secundário (ECD). Independentemente dos termos e do alcance de tal revisão, dou por mim a concluir que, relativamente a várias matérias, a revisão em curso traduz, isso sim, a verdadeira entrada em vigor de muitas normas. Ou seja, em vários desses aspectos “revisão” é eufemismo, já que tem apenas alcance formal. Formalmente é uma revisão, mas materialmente ainda não há nada para rever...

O caso é conhecido. Ao longo dos seis anos que o ECD já leva de jornada, muitas foram as disposições normativas que nunca tiveram qualquer aplicação prática porque não estavam — e não foram — regulamentadas. Tivemos assim um Estatuto que não o era, que supostamente assegurava direitos, afinal impossíveis de ser exercidos.

E se o caso é conhecido, o truque não o é menos. Consiste, essencialmente, em negociar e consagrar normas sem qualquer conteúdo operativo e que ficarão, assim, carentes de regulamentação para poderem ver a sua vigência efectivada. Depois, é só deixar que a soma dos dias vá pesando para concluir, de mãos ainda vazias, que afinal ainda temos que negociar a regulamentação! Enquanto estivemos ocupados a fechar a porta, deixamos que alguém abrisse a janela...

Mas não é só ingenuidade nossa. A perversão está muito em moda, e faz as delícias de qualquer governo.

No Quadro Constitucional Português, o Governo — orgão de soberania — tem um desenho de competências complexo e diversificado, traduzido na competência política, na competência legislativa (sempre derivada, já que resulta directa ou indirectamente de uma derivação dos poderes do orgão legislativo por Excelência, que é a Assembleia da República) e na competência administrativa do Governo. Esta última seria, em bom rigor, a competência típica de um qualquer Governo, e aqui se inclui (veja-se o artigo 202º, alínea c), da nossa Constituição) a elaboração dos “regulamentos necessários à boa execução das leis”. Ou seja, a regulamentação tem necessariamente — só pode ter — carácter instrumental, acessório, não podendo nunca nela residir o núcleo essencial de qualquer direito.

O que é facto, é que com as voltas que a repartição dos poderes deu da Revolução Francesa para cá, registamos hoje uma certa promiscuidade entre a competência legislativa e a competência administrativa dos Governos, a ponto de se poder concluir — como aliás já tinham concluído os juristas italianos dos anos 50, num movimento que veio a ficar célebre... — que não precisamos de novas leis, mas sim de garantir a efectiva aplicação das leis que temos!

E essa garantia, a nosso ver, passa necessariamente por dois planos. Por uma lado, e antes de mais, pela pressão negocial (cívica, política, sindical...) que permita a elaboração de normas com um conteúdo operativo mínimo, sob pena de estarmos a negociar inutilidades! Por outro lado, pelo uso mais apurado dos mecanismos constitucionais e legislativos que permitem a penalização das omissões governativas, na medida em que tais omissões limitem ou impossibilitem o exercício de direitos anteriormente consagrados.

Rui Assis


  
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Autoria:

Rui Assis
Jurista
Rui Assis
Jurista

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