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Noite Hollywood

"Have you been to Hollywood?". Esta é uma das primeiras questões que te colocam à chegada a Ulan Bator. Não. Não estamos na América. Hollywood é a única discoteca da capital, o local mais in da Mongólia. Mas antes de Hollywood, o Green Club: o único restaurante com comida vegetariana em todo o país. Sextas à noite transforma-se no ponto de encontro da comunidade estrangeira que aqui reside e trabalha. "Oh ! Português !", exclama admirado Steve Fordham, engenheiro encarregado das obras de alargamento das instalações do aeroporto . "Ouvi dizer que há por aí uma empresa portuguesa envolvida num empreendimento qualquer... Penso que se trata de um novo hotel. Devia informar-se".

O Green Club fica arrumado nas traseiras do edifício da Paz e Amizade, anunciado por letras garrafais e a estátua de bronze de duas crianças e uma pomba. Apesar de estar classificado como restaurante indiano, da Índia só se fôr a fatiota do empregado e o caril na comida. Ressalvo as samosas que até nem são nada más. "Sabe que foram os portugueses que as levaram para a Índia. Em Portugal chamamos-lhe chamuças", informo o amigo inglês. No cômpito geral a comida mal cobre o fundo do prato, mas a conta, apresentada no decorrer da refeição - talvez para tentar desembaraçar a mesa para outros clientes -, transborda em muito as expectativas. Isso de pouca fartura e custos fartos é facto adquirido quando se come nos restaurantes da Mongólia.

E lá vamos nós a caminho do Hollywood, no outro lado do Tuva, mesmo por detrás do reçém concluído Gengis Khan, hotel de cinco estrelas arquitectado por cérebros e mãos jugoslavas. A discoteca fica no segundo andar do Centro de Actividades Juvenis, um complexo de betão que inclui ainda o Rainbow Club e um café com bilhares. E mais não se vislumbra. Às 23 horas são ainda poucos os carros estacionados à entrada. No átrio, junto ao vestiário - na Mongólia todos os locais públicos possuem um ou mais vestiários -, a estátua de um arqueiro prateado, numa alusão a um conhecido mito mongol, aponta para o tecto baixo. Duas prostitutas acompanhadas por clientes asiáticos cambaleantes (chineses de Singapura?) discutem estratégias. No primeiro andar um rapaz com ar cansado está sentado à frente de duas portas. No interior, três pares de olhos mergulham no televisor do bar às moscas. Eis-nos no limiar do antro nocturno por excelência de Ulan Bator - encerrado que está o Varieté, junto à estação, onde se desenrolavam os strip-teases mais famosos de toda a Ásia. À entrada, seguranças de receptores-transmissores na mão, boné de basebol, e blusão "fashion casual wear" sobre os ombros, podiam muito bem fazer parte da decoração de qualquer clube novo-iorquino ou de Tóquio. "São 5 dólares para os homens", informa a minha amiga Kishgee. E acrescenta: "de taxa". O bilhetinho amarelo tem estampados os dizeres Disco/Pub/KTV e a imagem de um morcego - estratégia aprendida das lições do tio Ho ou coincidência decorativa?. "Para as mulheres, aos domingos e segundas é de borla", esclarece ainda a amiga. Bruxo ! Explicada estava a legião de raparigas presentes essa noite. Mais um lanço de escadas, e somos saudados por um dinossauro Jurassic Park em geito de troféu a sair da parede, um busto descomunal de um ser extraterrestre no centro de uma esfera espacial e fotografias minúsculas de estrelas do cinema americano emolduradas em enormes quadros pendurados na parede. "Muito maior do que pensava", exclamo ao ser confrontado com aquele autêntico salão de baile - tectos altos, meia centena de mesas em volta da pista de dança e um pequeno palco. Lugares todos ocupados. Resta-nos a mesa perto da entrada. Não admira que esteja livre: uma desagradável corrente de ar frio monta do andar inferior... As bebidas pagam-se em dólares ou tugrits. Cerveja? De lata. Marcas? As que desejarem. Todas importadas. Café? Chá? Népias. Apesar de haver água quente. Resultado: depois da Coca-Cola inicial, Kishgee bebe água quente durante toda a noite. WC? No rés-do-chão, please. Retretes unissexo, duas senhoras sentadas à porta com um maço de notas na mão. Ás 23.30 o ambiente é ainda de café. Olhares vagueiam de mesa em mesa, conversas animadas sobrepõem-se à música que passeia do hip-hop ao à capella tipo All for One. Tudo bem. Mas isto é uma discoteca ou quê? Ninguém dança? As doze badaladas da meia-noite respondem à pergunta. Abruptamente pára a música de fundo. Um jacto de fumo sai do orifício no púlpito do DJ. Nova música enche agora o ar com os decibéis redobrados: "This is the Rythm of the Night. . . Oh Yeah" . As meninas saltam para a pista, um primor de dançarinas. A coisa começa a animar. O pior é o fumo e as pessoas a tossir. Sinto os olhos a arder. Mas onde raio foram fabricar esta coisa?

Não se sabe muito bem se a intenção de fumegar o local é para criar ambiente ou asfixiar os clientes... Música disco. Da barata. E da mais cara. Os omnipresentes Ace of Base e algum Acid-Jazz de muito bom gosto que encoraja o pessoal da frentex a dar show. As prostitutas arrastam os clientes para a pista. Patéticos, quase a cair, deixam-se ficar agarrados à cintura das damas. Junto ao palco movimentam-se tipos de guedelha e casacos de couro. "São os Khorg (Speed), um dos grupos de rock mais conhecidos", informa Kishgee que continua a beber água quente para aquecer. Não haja dúvidas: esta encantadora kalkak está mais para espaços selvagens do que para pistas de dança. Breve aviso ao microfone. A música pára, apaga-se a luz geral, fazem-se girar as estraboscópicas sobre o palco. Dois guitarristas e um baixista, acompanhados pela caixa de ritmos, arrancam com uma versão metaleira de "L'éte Indien" de Joe Dassin. O vocalista interpreta depois mais um tema original do grupo. Tudo muito profissional. Na pista, os pares dançam agarradinhos. Finda a intervenção do grupo volta de novo "the rythm of the night". Quase como indicativo. Por cima de nós, num dos quatro televisores instalados na sala, a CNN transmite o encontro entre os Giants e os Eagles, em Filadélfia, na tradicional competição de futebol americano do Thanks Giving Day. As adolescentes dançam, incansáveis, com aquela sua forma de atirar o corpo para a frente, colocando as mãos à altura da cabeça como pugilistas em posição de defesa. Por entre a massa anónima movimentam-se figuras conhecidas do mundo artístico de Ulan Bator. A dois metros de nós dança Sarantuya, estrela número 1 e provavelmente uma das pessoas mais ricas da Mongólia. "Gosta de se misturar com a gente para se popularizar ainda mais", explica Kishgee. E de facto, passados apenas alguns minutos, Sarantuya vai-se embora, acompanhada por um séquito de jovens. De novo Khorg em acção. Tema original, uma balada, voz à Axel Rose. Para finalizar um "knock, knock in heaven's door" cheio de energia. A esta altura do campeonato sentaram-se já a nossa mesa - como parece ser habitual sempre que se está acompanhado por uma representante do sexo feminino - dois tipos completamente embriagados. São 3.30 da manhã e o salão continua repleto. Na pista a dança não dá tréguas. "This is the rythm of the night". Mas Kishgee está para outras danças. À saída, quase que parto a perna num degrau quebrado, manhosamente escondido debaixo do tapete vermelho. As prostitutas, já de casaco ao ombro, parecem discutir o preço com os homens de negócio. Antes de sairmos ainda ouvimos o "this is the rythm of the night, oh Yeah ! " . Talvez pela vigésima vez nessa noite .

Joaquim Castro


  
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Autoria:

Joaquim Castro
Fotógrafo e Jornalista
Joaquim Castro
Fotógrafo e Jornalista

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