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A Sanfona do Victor

Há uma Sanfona que chora, que grita, que brada aos céus, que esgana e engasga sons eruditos. Tropeçam, sucessivamente, em cinco cordas de tripa, obrigadas a cantar por um cilindro de madeira. E a mão do músico segura, firme, a manivela de ferro forjado e roda-a, roda-a sem parar, enquanto que os dedos vão carregando, cheios de tacto, nas poucas teclas de um instrumento que não se parece com coisa nenhuma, a não ser com uma Vénus de Milo.

À medida que o som espiritual da Sanfona se espalha pelo compartimento, vislumbra-se uma montanha, ornada por abetos dos Alpes, e ruminantes que devoram, lentamente, a língua de ovelha dos pastos. Pela encosta, várias mulheres, trajadas de cores garridas e com tranças pretas até à cintura, dançam a "Marcha dos Foliões". Levantam-se, levemente, em bicos de pé e os véus esvoaçam, tocam nos ramos cobertos de flor, enroscam-se e prendem-se nos lábios carnudos. E o som da Sanfona vai saindo devagar, como se divagasse por entre os corpos das dançarinas.

Sexta-feira. Nove e meia da noite. A garrafa de vinho do Porto, caseiro, está pousada numa mesa de "meia tigela" do Orfeão da Feira, com seis cálices a acompanhar. Pela sala estão espalhados diversos instrumentos, mais seis indivíduos que os afinam, desafinadamente. São os "Purx'im", que traduzindo à letra significa "Porque sim". E porque assim o quiseram, juntaram-se para poderem viver, a sós, a música tradicional.

"À moda dos bons", o Victor, um dos séniores da equipa, olha interessado para o avô Fernando, que inspecciona o "Guterres", o cavaquinho do grupo. Levanta um instrumento e ajeita-o sobre as pernas. Parece um pedaço de madeira, roída pelo cupim, com a silhueta de uma mulher atravessada por cinco cordas de tripa. Assim que o Victor começa a dar à manivela, as cordas são friccionadas por um cilindro de madeira. Depois, o Victor carrega numas teclas, que se unem às cordas, e o som que sai daquela caixa só nos consegue fazer imaginar a metamorfose de uma montanha em donzela. "São os sons da música galaico-portuguesa", conta-nos o avô Fernando, enquanto levanta o nariz em direcção à Sanfona, que para tocar em "condições" demora "um tempão" a ser afinada. "Como tenho pouco tempo", explica o Victor, "ando às voltas com a Sanfona uma ou mais semanas". Mas compensa: "Este instrumento tem um som característico, contínuo, do tipo de instrumento de fricção, como o violino. Só que em vez de ser tocado, as cordas são friccionadas por este cilindro e sai o som que está a ouvir. É parecido com a gaita-de-foles".

Ao Victor, ninguém o ensinou a tocar na Sanfona. "Vi-a duas vezes a ser tocada, uma na Catalunha e outra por um fulano do Porto, e a partir daí consegui tirar os primeiros sons". A curiosidade foi tanta que decidiu arranjar uma Sanfona só para ele. "Sei que em Portugal existem cinco exemplares destes, novos. Desconheço se há algum secular, porque este instrumento tem cerca de 700 a 800 anos. O que sei é que ao longo dos anos passou por diversas fases, desde a erudição até ao seu abandono, sendo renegado para as mãos dos cegos que o usavam nas feiras, durante a Idade Média". Insistente, descobriu na Galiza uma fábrica-museu de instrumentos seculares. E, sem pensar duas vezes, mandou que se fizesse uma Sanfona. "Custa os olhos da cara, entre 400 a 500 contos, mas é gratificante pelo som inconfundível que dá".

Às tantas, os cálices enchem-se, porque "o vinho do Porto caseiro é a pilha do afinador". E como não há mulheres no grupo, "das duas que tínhamos, até essas nos largaram", os homens bebem e passam os dedos sorrateiros pelos instrumentos, como se tocassem nas figuras femininas que não existem.

Os "Purx'im" não querem ser conhecidos e muito menos passar pelos ecrãs da televisão. Por um motivo muito simples: "Nesta zona não há um grupo que toque música tradicional séria. Só se toca a pimba da música tradicional, ou seja, as pessoas tocam o mais fácil". Vai daí, "senti-me na obrigação de tentar combater tanta pobreza e criar um grupo mais exigente em termos musicais". Primeiro veio o avô Fernando, lá dos lados de Oliveira de Azeméis, depois o Toni, que faz parte do Rancho do Orfeão, mais tarde juntaram-se "três putos", que gostam "do que é moderno", mas que não desprezam "a tipicidade destes instrumentos".

Instrumentos ao alto, seguidos pela alma do grupo que é a Sanfona, lançaram-se todos a dar espectáculos, para eles próprios e para os amigos. "Nós não somos pimba e muito menos temos algo gravado para apresentar ao pimba do play´back da televisão. Gostamos, apenas, que as pessoas tenham acesso a isto, mas de outra forma: numa sala pequena, onde se possa digerir o som da Sanfona. Em molhe, com toda a gente a conversar, ninguém consegue ouvir a fineza destes sons, que exigem um público com um certo nível de cultura". E acrescenta: "Preferimos tocar de graça". De graça, mas nunca a seco. "Logo que haja uns comes e bebes, a malta já fica satisfeita".

Agora, imagine-se sentado numa cadeira, com o som espiritual da Sanfona a espalhar-se por todo o compartimento. E a montanha a aparecer, ornada de mulheres que dançam em bicos de pé. É à sexta-feira à noite, no Orfeão da Feira.

A Sanfona do Victor



  
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Autoria:

Isabel Forte

Isabel Forte

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