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Tinha 20 anos no 25 de Abril

Na sexta-feira passada recebi o "Riso de Deus". O livro do Alçada Baptista. Foi-me oferecido por uma aluna que já é professora. É a minha “novidade” de Janeiro. Não se deve comprar livros só por que são novidade. Não se deve ver filmes do Manoel de Oliveira por obrigação, não se deve ir aos restaurantes da moda por obrigação.

Voltando aos livros. Este Natal a minha irmã ofereceu-me o último de Álvaro Cunhal. Chegado a meio fui levado a folhear outros livros: “A Paleta e o Mundo” do Mário Dionísio e um outro, de André Malraux, “As Vozes do Silêncio”. Para mim há livros muito especiais. O “Ulisses” do irlandês James Joyce, que esteve proibido nos Estados Unidos da América e que eu nunca consegui ler até ao fim. Outros que já li duas ou três vezes, como “O Retrato de Dorian Gray”, de Oscar Wilde. Fascina-me a riqueza da análise psicológica e o modo como são encaradas as convenções sociais e morais. Também comprei musica neste Natal. Comprei “Os Nocturnos” de Chopin, pela Maria João Pires, e, para a minha filha, o disco do Abrunhosa. E também os "Gioia e Rivoluzione", dos AREA, um grupo italiano de rock. Só por causa da “Internacional”. É das raras versões em CD da “Internacional”. Já houve natais que comprei arte: uma ou outra serigrafia. Quando tinha dinheiro.

Quando cheguei ao Porto, a cidade oferecia, por pouco dinheiro, roteiros fascinantes. Eu sempre gostei muito da cidade do Porto. Recordo os primeiros dias aqui vividos. O que mais me agradava na cidade era o que se podia fazer quase sem dinheiro, ou com muito pouco dinheiro. Grandes passeios a pé pela cidade, ir ao cinema, que era barato na altura. Via-se um filme bom, de vez em quando, e dois maus, pelo preço de um, no Carlos Alberto. Comprava-se um livro, de quando em vez, e comia-se barato e bem. Havia cafés que tinham uns combinados óptimos, um combinado no Latino, o n 10, custava 20 paus. E por apenas metade do preço uns pratinhos de tripas no Leal, aos Congregados. O que havia mais, era gente nos cafés até tarde... Conversava-se, contava-se histórias, dizia-se mal do Governo... Com as cautelas de quem tinha medo da Pide.

A mesada começou a minguar a seguir ao 25 de Abril. Havia livros, discos, espectáculos que a gente não queria perder Passamos a ir mais ao teatro... E havia os comícios e as manifestações...

Encontravam-se amigos e faziam-se amigos. Hoje a situação é diferente. Tinha 20 anos no 25 de Abril. Hoje as coisas são completamente diferentes. Apareceram os pubs, os bares, que não aprecio. Tornei-me professor, arranjei um trabalho de que gosto, passei a ter mais dinheiro, ganhei outros hábitos de consumo. As manifestações já não tem tanta piada... Não falto ao l de Maio... Naquele tempo cheguei a alugar, na Rua Júlio Dinis, com uns amigos, um escritório. Para convívios culturais. Desde quando é que sou professor? Sou professor desde 13 de Março de 1976. Desde o tempo em que o dinheiro de um professor dava para uma aventura cultural. O que é para mim uma aventura cultural? É estar no Porto e ir a Lisboa só porque apetece ver uma determinada peça de teatro. Fui ver, duas vezes, o Círculo de Giz Caucasiano, que o João Lourenço encenou no Teatro Aberto, à Praça de Espanha. Ficava numa residencial. Tinha dinheiro para isso. As coisas, agora, são bem diferentes. Quase não há teatro, as companhias tem dificuldades enormes.

Agora com o vencimento de professor do 7 escalão, com uma filha, é preciso deitar contas à vida e usar um critério apertado. Não dá para arriscar num espectáculo de duvidosa qualidade. É preferível ver, duas ou três vezes, o mesmo filme. Já vi o “Living Las Vegas” quatro vezes. É a história de um homem que perde a família e quer morrer bebendo sem parar, o que só e possível num sítio como Las Vegas.

Qual o filme que escolheria para a série “o filme da minha vida”? O

“Enforcamento" de Nagisa Oshima. Eu vi esse filme no Estúdio, aqui no Porto. Descreve os momentos de um homem que vai morrer. A ideia que me ficou do filme é um apego à vida, um apelo do caraças.

Porto? Porto, pois claro. Gosto tanto do Porto que até queria comprar a História do Porto, da Porto Editora. Mas aquilo custa muito. Hoje compro dois livros por mês e um deles tem de ser da Expo98 ou da Brevíssima Portuguesa. Hoje fico indeciso entre ir ao cinema ou comprar um livro.

O que gostava mesmo era poder fazer uma aventura cultural a sério. Ter dinheiro para ir, de quando em vez, de cinco em cinco anos, a uma exposição de pintura, daquelas grandes exposições que acontecem em Madrid, em Paris, em Londres... Já não sonho com outros destinos....

Bom Londres tem de ser o Porto, onde uma boa maneira de passar o tempo é a jantar com os amigos.... Também há aventuras culturais do tipo gastronómico. Ainda ha dias, em Manhouce, desossei um cabrito recheado e assado no forno que não vos digo nem vos conto. No Porto ainda há muitos sítios onde comer bem e relativamente barato. O Manuel do Redondo, por encomenda, serve um arroz de penca com costela mindinha que me anda a fazer crescer água na boca. Pelo preço médio de um livro consegue-se almoçar ou jantar muito bem e com vinho bom. Eu, às vezes, fico indeciso entre comprar menos um livro, em nome de um bom jantar.

Quanto ao cinema, bem, não se deve ir ao cinema só pelas estrelas ou pintinhas de alguns jornais.

E por falar em jornais. São todos fracos. Eu compro dois, aos sábados: O “Público” e o “Diário de Noticias”. Por causa do livro e do disco. Leio o JN todos os dias. Para quem gosta de sentir o Porto. o Jornal de Notícias é o melhor jornal. E quem gosta de futebol deve ir ver jogar o Futebol Clube do Porto.

Por último dois conselhos de rodapé de roteiro. Não aos hamburgueres e ao vinho de má qualidade para todas as pessoas com e sem problemas de dieta. Sim aos editorais do Jornal da FENPROF, para todos os professores e para quem gosta de ler em bom português.

 


Tinha 20 anos no 25 de Abril

no próximo mês outro roteiro com outra assinatura a abrir e outro título no fim

 


  
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Autoria:

Henrique Borges
Professor de Filosofia, Porto
Henrique Borges
Professor de Filosofia, Porto

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