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Exclusão escolar e democratização do Ensino Básico em Portugal

Aos Professores da Escola da Ponte nº 1 - Vila das Aves

Não estarei a revelar nada de novo se disser que, nos dias de hoje, a exclusão escolar tem vindo a adquirir uma visibilidade social sem precedentes, por razões que se prendem, sobretudo, com o papel que em geral se atribui à escola quer como dispositivo de regulação social, quer, neste âmbito e por força do fenómeno crescente da credencialização, como um dispositivo regulador do acesso dos indivíduos ao mercado de trabalho. Nunca como hoje as habilitações académicas assumiram a importância que assumem na relação entre os indivíduos e o (des)emprego, sendo possível concluir que embora os níveis de escolaridade sempre tenham condicionado o tipo de opções profissionais realizadas, nem sempre o insucesso escolar foi entendido como um factor potenciador de exclusão social

(Trindade, 1996).

É esta tomada de consciência, acerca da relação de interdependência entre exclusão escolar e exclusão social, que explica a importância assumida pela primeira no âmbito dos debates que hoje se travam na área das Ciências da Educação, nomeadamente aqueles que se relacionam com a democratização e a credibilidade social da escola portuguesa, a qual é posta em causa pelos números que dispomos acerca do que se convencionou designar por mortalidade escolar no âmbito do sistema educativo português. Assim, constata-se que, ao nível da escolaridade básica, segundo números de 1992, existem 150 000 repetentes, aos quais será necessário acrescentar os outros 90 000 que, anualmente, vão abandonando as escolas (Azevedo, 1994). As consequências sociais desta situação são evidentes, mas, apesar da sua importâncias não é sobre elas, nem sobre as razões que explicam a exclusão escolar, que se debruça a comunicação que pretendo partilhar convosco.

Parece-me ser hoje muito mais pertinente, do ponto de vista sócio-educativo, reflectir sobre as modalidades e as estratégias que têm vindo a ser utilizadas no combate à exclusão escolar, reflexão que todavia não pode ser dissociada da discussão acerca dos eixos conceptuais, das tensões e dos equívocos que têm vindo a caracterizar o debate em torno da definição do actual mandato educativo do sistema português, de forma a explicitar-se, assim, o que neste sistema se entende por educativamente desejável e legítimo (Stoer, Stoleroff & Correia,1990).

Neste sentido, e para iniciar a discussão acerca das modalidades e das estratégias que têm vindo a ser utilizadas no combate à exclusão escolar, começaria por equacionar a seguinte questão: a educação escolar visa contribuir para promover a repartição eficiente dos indivíduos no âmbito do sistema produtivo e da sociedade portuguesa em geral ou constitui antes um instrumento de combate a uma sociedade fortemente diferenciada sob o ponto de vista social ?

Ou seja, as medidas implementadas para combater o insucesso e a exclusão escolares, pese a diversidade das mesmas, subordinam-se a uma racionalidade educativa de tipo meritocrático ou, pelo contrário, expressam um compromisso com um tipo de racionalidade que, à falta de melhor designação, apelidaria de racionalidade sócio-crítica ?

Das opções assumidas neste âmbito resultam projectos de intervenção necessariamente diferentes, que se caracterizam, no caso das abordagens meritocráticas, pelo facto de constituirem a expressão de estratégias através das quais não se discute nem se reequaciona os pressupostos fundamentais da cultura pedagógica dominante. As medidas relacionadas com a racionalidade sócio-crítica explicam-se, por sua vez, em função de um outro tipo de compromissos e, por isso, a questão da exclusão escolar começa por ser abordada em função da relação de interdependência que se estabelece entre essa problemática e a natureza dos projectos educativos concretos que se desenvolvem no âmbito de cada escola.

Em suma, o confronto entre estas duas abordagens remete-nos, novamente. para uma das questões fulcrais que se têm vindo a colocar a todos aqueles que intervêm no domínio da intervenção e da inovação educativas, a de saber até que ponto a exclusão escolar se combate pela adição de novas oportunidades educativas às oportunidades já existentes nas instituições escolares ou, se pelo contrário, o que importa é modificar a qualidade, a natureza e o sentido pedagógico destas mesmas oportunidades nessas instituições.

De acordo com o quadro de leitura proposto, pode então afirmar-se que as estratégias que se relacionam com uma racionalidade de tipo meritocrático tendem a originar projectos de intervenção que se justapõem aos projectos curriculares já existentes, enquanto as medidas inscritas em projectos comprometidos com uma racionalidade de tipo sócio-crítico prevêem acções capazes de transformar as próprias opções curriculares, em função de uma análise fundamentada das prescrições explícitas e implícitas, bem como das idiossincrasias do universo escolar onde os alunos se movimentam. As acções tendentes a combater a exclusão escolar assumem, por isso, sentidos diferentes consoante o modo de perspectivar tal problemática, ao nível das suas causas, das suas diferentes dinâmicas e, consequentemente, das soluções que se acabam por desenhar.

Numa primeira tentativa de categorização das acções relacionadas com o combate à exclusão escolar podemos encontrar dois grandes tipos de projectos: (i) aqueles que se desenvolvem no interior das próprias escolas (ii) outros que se implementam em contextos extra-escolares, onde se ensaiam respostas de forma a promover a adaptação dos alunos em situação de risco, às solicitações das escolas que frequentam.

Por sua vez, no interior de cada um destes tipos de projectos poderemos ainda distinguir aqueles projectos que se subordinam a urna lógica remediativa, isto é, que assumem uma natureza eminentemente instrumental, pretendendo apenas contribuir para a capacitação dos alunos na resolução dos problemas que as escolas lhes propõem e lhes criam, sem discutir a legitimidade e pertinência dos mesmos, antes os assumindo como elementos indiscutíveis de uma cultura inquestionável ou, pelo menos, de uma cultura que os promotores desses projectos não se sentem capazes de questionar;

Podemos ainda encontrar outros projectos que se relacionam com um outro tipo de lógica, a partir da qual se define que, mais do que eleger os alunos em risco como os sujeitos-alvo dos projectos, se pretende potenciar as transformações necessárias no âmbito da cultura institucional das organizações promovendo, entre outras coisas, uma gestão contextualizada e singularizada dos currículos escolares, os quais, por serem os elementos fundamentais de mediação, no âmbito dos contextos escolares, entre os alunos e o património cultural colectivamente construído, constituem o instrumento estratégico através do qual tanto se promove a sua inclusão como a sua exclusão.

Numa primeira leitura creio ser possível concluir que são os projectos que se desenvolvem dentro das escolas aqueles que parecem ser os mais eficazes no combate à exclusão escolar, já que possuem uma latitude de intervenção mais ampla que os projectos que se desenvolvem em contextos extra-escolares, os quais, pese a sua importância pontual e até o impacto dos resultados obtidos, correm sempre o risco de nunca interferir na dinâmica educativa das instituições escolares que tornam possível produzir a exclusão escolar. De um ponto de vista estritamente teórico parece-me ser perfeitamente defensável tal perspectiva; tendo em conta a multiplicidade das experiências que ocorrem no terreno torna-se mais prudente reconhecer que nos encontramos perante um campo de análise caracterizado pela diversidade dos projectos e, sobretudo, por um nível de comp!exidade que não se compadece com a evidência das leituras imediatas, exigindo, pelo contrário. uma análise atenta e cuidada desses mesmos projectos e das configurações particulares que estes assumem, independentemente das suas intenções iniciais e dos seus equívocos conceptuais.

Lembro-me, neste caso, de algumas das acções desencadeadas no âmbito do PIPSE, as quais, pese a natureza compensatória e remediativa desse programas se assumiram como projectos de intervenção capazes de problematizar os contextos escolares no seu todo e, posteriormente, encontrar respostas que não ficaram circunscritas apenas a intervenções de natureza casuística, dando origem a intervenções interessantes e pertinentes no âmbito do combate à exclusão escolar.

Do mesmo modo, devo reconhecer a importância do contributo dos projectos de intervenção comunitária no domínio da construção de sinergias locais, nomeadamente com as escolas, de forma a potenciar a sua acção sócio-educativa tanto no espaço que lhe diz respeito, como no âmbito dos territórios com os quais se relacionam. Trata-se de reconhecer, assim, que a questão da exclusão escolar é uma questão que diz respeito, prioritariamente, às escolas e às dinâmicas educativas que estas sejam capazes de desenvolver. Desde que se reconheça a evidência deste facto. torna-se possível clarificar o sentido de algumas acções que devido a excessos de voluntarismo ou à premência dos problemas sociais com as crianças, os adolescentes e os jovens, acabam por desresponsabilizar, voluntária ou involuntariamente as escolas pela adopção de medidas tendentes a impedir a progressão do fenómeno da exclusão escolar.

Encontramo-nos, assim, num terreno que implica a necessidade de olhar para lá do imediatamente visível, um terreno marcado por contradições e equívocos conceptuais que o tornam numa pequena Babel; daí que seja necessário avançar com alguma prudência e já agora (porque não ?) com muita decência.

Acredito, por isso, que uma das medidas mais recentes adoptadas pelo Ministério da Educação para combater tal exclusão, os malfadados currículos alternativos, devam ser sujeitos a uma avaliação cuidada e séria, quer porque nada nos garante que não possam ser geridos numa perspectiva que, em vez de promover a inclusão, potencie a exclusão, correndo-se então o risco de se desencadear o efeito DDT, ou seja alcançar-se a salvação, morrendo-se da cura; quer porque podem constituir um primeiro passo para se compreender as possibilidades de construção de uma opção curricular alternativa à cultura curricular vigente no Ensino Básico a única questão que afinal importa compreender quando discutimos o problema da exclusão escolar.

É que não basta afirmar a capacidade transformadora dos projectos que se desenvolvem no interior das escolas para se resolver tal problema, sobretudo, quando as medidas adoptadas ignoram a questão curricular em toda a sua extensão, limitando-se a produzir um género de intervenções, do tipo de acções de animação extra-curriculares, que se caracterizam por tentar ignorar ou evitar interferir na relação que se estabelece entre os alunos e o saber que o sistema educativo, as instituições escolares e os professores decidiram ser o saber legítimo a aprender, através da acção docente nas disciplinas curriculares tradicionais. Do mesmo modo, e noutro sentido completamente diferente (já que se valoriza agora o aproveitamento dos alunos nas tais disciplinas curriculares tradicionais), tem vindo a verificar-se a ineficácia das acções relacionadas com os chamados apoios pedagógicos acrescidos ou as aulas de compensação educativa (Roque, 1997), sobretudo por não serem capazes de se libertar do espartilho que o currículo-padrão lhes impõe.

Em suma, qualquer abordagem útil da problemática da exclusão escolar reafirma-se, deverá ser considerada como uma questão que diz respeito, em primeiro lugar, às escolas, o que implica necessariamente uma discussão aberta acerca do sentido e da natureza das acções e dos projectos que aí se desenvolvem. Só depois se torna importante discutir as modalidades educativas e os recursos necessários à construção de espaços escolares que por elegerem a dignidade, a diversidade e a democratização do sucesso como os seus vectores principais, se podem assumir, por isso, como espaços escolares inclusivos.

Ariana Cosme


  
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Autoria:

Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto

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