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a derrota do espartilho

De olhar baixo. Involuntariamente depressivo e tímido: o da mãe e da tia, na viragem do século. Silhuetas rodeadas de rendas e franzidos ocultando o colo e os tornozelos com o pudor que o meio social pauta. As luvas e os chapéus rematam o enclausuramento do corpo na tradição cristã. Lenta e conscientemente desnudam-se os ombros e a perna deslumbra-se na meia de seda. O espartilho e a cinta assumem a sua derrota. O olhar é mais frontal, muitas vezes tisnado de “coqueterie”.

Estamos num período de profundas rotações sociais, culturais e políticas. Era a art noveau ondulante a dar lugar à art deco geométrica, do can-can ao jazz; os ousados fatos de banho, o cabelo, o vestuário a dar volta aos conceitos pesados. Ouvia-se ao longe os rumores da revolução soviética, enquanto Fátima começava a fazer estremecer o povo católico. O filósofo Proudhon enovelara-se nos ideais político-sociais. A América começava a deitar voz em vez da França, com a máquina a ser senhora.

A burguesia revela um estar cada vez mais ousado entre as duas guerras e assume-o através do corpo que higieniza mais frequentemente e ginasticam-no por sugestão das revistas femininas. Poderíamos dizer que, em 1930, ainda o dia-a-dia era marcado pelos odores que se esbatiam a seguir ao banho semanal burguês e mais espaçado para o povo. O corpo reivindica o seu lugar, veste a sua pele tão longamente aprisionada e dá-se ao prazer de se habitar. É ele que revela a marca de identidade da pessoa que o escolheu como morada. A moda, após a Primeira Grande Guerra, domina cada vez mais o mundo sedutor da mulher.

E pode deixar com liberalidade os ritos sociais emaranhados na moral que a valsa, a quadrilha codificavam, para os sentidos se fundirem no tango ousado dos pares que se entrelaçam, ou mais tarde, já depois da II Guerra, a criatividade nos movimentos com o jazz, o charleston, o boogie-boogie.

E a toda esta transformação social, política, cultural, fez despertar do casulo, a mulher. Não apenas, no exterior, revestido de sedas decotadas, leves, transparentes e roçagantes que descrevem com pormenor os contornos em explosão. Mas também no seu grito interior que vai quebrar as amarras escravas ao/do machismo.

Vai querer reivindicar a total igualdade entre homens e mulheres, não por uma guerra de sexos, mas pelas discriminações que a fazem submeter e revoltar, só por não ser homem. A sociedade era levada a reger o seu código comportamental pela omnipresença machista em todos os cargos.

Possivelmente começava-se a delinear não a decadência do homem, mas o ocaso do machismo, ao se confrontar com a ascendência e ocupação das mulheres aos lugares e situações até então monopólio d’Ele. Talvez tenha contribuído a vaga de tristeza depressiva que se apoderou do povo após os massacres de 14 e 18 que ceifaram os varões mais prometedores que estariam à altura dos desafios económicos. E essa brecha é inconscientemente, talvez, ocupada pelas vozes femininas que se começavam a ouvir por todo lado, inicialmente com a timidez herdada de tantos séculos de submissão dolorosa, amordaçada, inquisitorial. Claro que também se vislumbra um quietismo absurdo, uma anuência doentia, um maria-vai-com-as-outras, quase herança genética, com o pecado da maçã incrustado até à medula comportamental que a Igreja explora e, claro, o homem se banqueteia. Progressivamente o véu amedrontado desvanece-se e a resolução, a invectiva, a tenacidade, a igualdade não legislada, porém brotada de cada víscera, ocupa o lugar que lhe está reservado há muito tempo.

Maria Ivone Paz Soares


  
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Maria Ivone Paz Soares

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