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Anarquismo: A Utopia não é uma Ilha

Talvez mais como credo ético pessoal do que como força revolucionária, o anarquismo é uma doutrina que atraiu bastantes pessoas em cada geração. Principalmente junto das camadas mais jovens. E, tal como alguém escreve 'punks not dead' nos muros deste mundo, bem se poderia pichar, também, que "o anarquismo não morreu". Está apenas adormecido no lado menos sombrio do homem, havendo, todos os dias, quem lute pela sua elevação.

J.P. e Mário são dois desses convictos anarquistas, portuenses. Cabelos rebeldes e olhar distante um, capacidade discursiva e casaco de couro negro o outro. Em ambos, a convicção das ideias que defendem.

O primeiro tomou conhecimento dos pensamentos associados a este ideal quando viu desenhado numa parede o tradicional símbolo 'A' rodeado de uma circunferência. "Não sei porquê, mas aquela imagem despertou-me o interesse. Naquela altura não fazia ideia do que pudesse significar, mas aos poucos fui-me informando e descobri tudo o que estava na sua origem. Mais ainda quando, numa manhã, na feira da vandoma, vi à venda o livro "Anarquistas e anarquismo". Talvez tenham sido os trezentos escudos mais bem empregues na minha vida. Devorei todas as páginas. Depois disso, passei a ir à biblioteca consultar outros títulos para conhecer o assunto mais aprofundadamente e fui conhecendo amigos que partilhavam o anarquismo com o mesmo interesse. Foi um período interessante, de contínua descoberta".

Não faltou muito para que, daí a uns tempos, começasse a desenhar com 'spray' aquele 'logotipo' pelas paredes da cidade. "Era como que uma espécie de mensagem libertadora, contendo uma enorme força, que eu sentia vontade em difundir por todo o lado e fazer com que as pessoas vissem e sentissem o mesmo tipo de curiosidade que experimentei".

Quanto ao Mário, a experiência foi diferente. "Devia ter uns catorze anos, uma altura em que havia bastantes 'punks' na rua. Principalmente, achava piada ao modo deles se vestirem e à maneira como usavam o cabelo, mas, por outro lado, considerava-os independentes e respeitados porque ninguém se metia com eles. Na minha escola também havia um pequeno grupo, do qual poucos gostavam e que se encontrava sempre 'do lado de fora'. Em parte, talvez tenha sido essa uma das razões que me levou a aderir".

A televisão, pelas imagens que lhe transmitiu de Londres, dos Sex Pistols e de todo o ambiente , também o influenciaram decisivamente. Era a teoria do caos, como, em parte, Kropotkin a definiu: "destruir para reconstruir". Mas, nessa altura, não eram propriamente as ideias que o impulsionavam, até porque as desconhecia. A ideia de anarquismo associada ao caos, tal qual a concebia, foi perdendo consistência à medida que "foi lendo umas coisas". Mais ainda quando conheceu J.P. e este o ilucidou sobre "o outro lado" do anarquismo e o pôs em contacto com a 'produção teórica'. "Foi como redescobrir um novo sentido para a palavra", conta.

Tal como os seus antecessores fizeram ao longo dos dois últimos séculos, a veiculação das ideias é feita através da elaboração de fanzines e panfletos, em colaboração com grupos homónimos da Catalunha, França e Alemanha, e distribuídos em círculos mais ou menos restritos. Fotocópias com textos e fotografias, que "saem quando calha" e são pagos dos seus bolsos. Uma revolução feita com tostões.

"A vontade de concretizar a revolução esmoreceu um pouco aqui em Portugal. É um mal comum no nosso país: os ideais não passam de modas e rapidamente são esquecidos. Lá fora, como não podia deixar de ser, tudo é diferente. Principalmente em Barcelona e Berlim, onde o anarquismo é, ainda hoje, um ideal seguido por muita gente nova e menos nova", afirmam.

De entre os períodos históricos influenciados por esta corrente, o que consideram mais interessante é o da guerra civil espanhola e a associação entre anarquismo e sindicalismo. "É fantástico, também, pensar que havia pessoas suficientemente solidárias e vinculadas aos seus princípios para virem de países estrangeiros, constituírem milícias populares e combaterem contra o que consideravam estar mal. Hoje em dia, isso seria impossível".

Essa predisposição ficou evidente há alguns anos, quando os ataques de skinheads no Porto eram mais frequentes, quando fizeram parte do auto-denominado grupo "autónomos". Uma forma de combate, dizem, que juntou pessoas de diversos quadrantes ideológicos e partidários e se aproximou, de certa maneira, desses tempos de luta contra o fascismo em Espanha".

"Preferimos lutar com as ideias, mas existem momentos em que as acções devem dar lugar às palavras. Era impossível ficar de braços cruzados e assistir ao desenvolvimento impune de ideais fascistas. preciso haver uma força de interposição, de resistência, nem que para tal fosse preciso recorrer ao confronto directo. Foi por essa razão que surgiram os autónomos".

'Anarco-pacifismo'

Mas será válido combater a violência com mais violência?

"Não necessariamente", afirma Raquel, 19 anos, estudante de filosofia na Faculdade do Porto. Tal como Proudhon, ideólogo francês contemporâneo de Marx, acredita que a transformação da sociedade pode ser levada a cabo por meios pacifícos. Talvez haja quem a olhe de lado e a considere como mais uma excêntrica, cabelo às madeixas roxo e ruivo, com uma série de brincos perfilados em cada orelha. Talvez. Mas talvez também tenha ideias mais concretas acerca da vida e dos objectivos que pretende atingir.

"Os instintos violentos dos homens são os causadores das guerras, e devendo, por isso, ser utilizados para fins racionais". Assim, explica, "a solução última passa pela abolição do militarismo, que, por sua vez, só poderá acabar depois da revolução social que estabeleceria um método para transformar o ódio e a vingança num sistema de direito respeitado por todos. E se pensarmos de forma contrária, então estaremos a renegar, quanto a mim, os verdadeiros princípios anarquistas".

Mas Raquel não entra em linha de conta com todos os pensamentos daquele ideólogo. "Concordo apenas com alguns. Em relação ao papel da mulher na sociedade, por exemplo, ele era retrógrado. Talvez fosse fruto da época em que vivia, mas não deixam de ser opiniões que não partilho", conclui.

A ideia central do 'seu' anarquismo é retirada da passagem de um livro que transporta consigo: "Quando os homens tiverem adquirido finalmente o senso de justiça, então as suas relações serão governadas pelo respeito, espontaneamente sentido e mutuamente garantido, da dignidade humana (...). A justiça é para os seres inteligentes e livres a causa suprema das suas decisões". Fechando as páginas do manual, afirma com semblante pensativo: "ninguém poderia ter definido de melhor forma a ideia de anarquismo. É isto".

Perguntamos se este não é um estado social provavelmente muito difícil de ser atingido.

"Talvez, mas a utopia não é uma ilha", responde.

Ricardo Jorge Costa


  
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Autoria:

Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação

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