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Ainda o Projecto Educativo ou a tentativa de gerir a enormidade da norma

A expressão enormidade da norma fui buscá-la a D. HAMELINE que a usa a propósito da caracterização do trabalho da Escola, enquanto a esta cabe um importante papel de regulação social. Embora o autor referido utilize a expressão a propósito duma problemática diferente da que me proponho aqui abordar hoje, nem por isso as potencialidades reflexivas por ele sugeridas deixam de ser pertinentes para uma abordagem do projecto educativo, enquanto alternativa pedagógica nos dias que correm.

Segundo o entendimento que faço, o paradoxo suposto na expressão acima consiste no facto de a Escola ter de ser, ao mesmo tempo, o princípio da identidade e da diferença. Suportando-se uma na outra, porque não há identidade sem diferença e vice-versa, a realidade duma e doutra é intercondicionada, pelo que o princípio da identidade, representado pela norma, precisa da realidade da diferença para se poder definir. Esta realidade da diferença é, assim, ao mesmo tempo, condição da norma e função dela. É desta condição de a norma ter de ser causa e efeito da diferença (causa, porque é pela norma que a diferença existe e efeito porque é a existência diferença que impõe a necessidade da norma) que resulta a enormidade da norma: a norma é a diferença absolutizada.

Evidentemente que este processo é subtilizado na realidade quotidiana, mormente naqueles contextos sócio-históricos e culturais em que a produção e reprodução da vida social se desenvolve de forma regular e estabilizada. Tomemos um exemplo: quando a orientação institucional dominante da escola correspondia à necessidade de assegurar a reprodução da estratificação social, o seu princípio de identidade e o que fazia a sua excelência era construído sobre a existência de diferenças académicas, ao mesmo tempo que as construía, na base das quais se justificava a exclusão escolar, como condição da manutenção do status quo. O princípio da identidade aparece aqui como constitutivo da realidade da escola e como que independente das diferenças sociais que, na prática, o justificam; e justificam de tal maneira que a indiferença às diferenças se torna no princípio deontológico de tratar o diferente como o mesmo em nome do princípio da igualdade pedagógica, garantia de bem servir o Bem Comum.

Quando, porém, é justamente a questão da exclusão, não já visada individualmente, mas socialmente, que dita a preocupação institucional da escola, o seu princípio de identidade, a sua norma dominante tende a definir-se segundo o princípio do respeito pelas diferenças, o que traz como consequência o seguinte: ou a norma se torna indefinível como constructo a priori, e esta indefinição é constitutiva da pluralidade incontrolável das acções profissionais (e aí temos, uma vez mais, a enormidade da norma, agora por defeito) ou se remete para os contextos da interacção a sua definição.

Nestes termos, a vinculação institucional da Escola ao princípio do respeito pelas diferenças não transforma apenas o anterior princípio de identidade num obstáculo à construção da nova identidade da Escola; ela transforma também a diferença num valor a desenvolver e não apenas como estratégia para fazer triunfar a norma. Todavia, reemerge aqui uma questão central que não pode ser iludida: se a diferença é inculcada como um valor a desenvolver, poderemos nós prescindir do sentido que deve presidir ao seu desenvolvimento?

Ora, é precisamente, a questão do sentido que, não tendo conteúdo explícito na nova orientação institucional da Escola ao definir-se pela consagração do direito à diferença, procura instituir o Projecto Educativo como criador de sentido. É como se, doravante, a norma da acção fosse a de construir activamente a diferença, porque é na diferença que se encontra o sentido. A partir daqui, o bem comum já não é transcendente à Escola, mas imanente ao Projecto, já não é uma ideia, mas uma relação prática que sujeita o trabalho profissional a uma permanente recapitulação da acção.

É claro que há aqui lugar para perguntar se o Projecto Educativo não será, ele mesmo, uma ideia que tenta desempenhar, por sua vez, o papel da enormidade da norma...

Manuel Matos


  
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Autoria:

Manuel Matos
FPCE, Univ. do Porto
Manuel Matos
FPCE, Univ. do Porto

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