Por: Manuel Matos Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto (FPCEUP) Não é fantasia. Aconteceu. Um aluno do 10º ano apresentou-se, em dia de teste, artilhado de auscultadores, e perguntou à professora se havia algum problema em usá-los enquanto fazia o teste. A professora foi colhida pelo golpe. Estava cheia de ver alunas e alunos munidos daqueles já familiares aparelhinhos, uns, evidentemente, à volta do pescoço, outros dissimulados nos bolsos ou, clandestinos, nas pastas. Agora, na aula, para mais em pleno teste, ocupando a cabeça toda, não, não estava a ver... Perpassaram no seu espírito imagens em tropel, as mais contraditórias: umas contundentes, (será que ele tem as lições gravadas na cassete?) outras compreensivas, (talvez precise da música para se concentrar...) outras apenas estratégicas, para ganhar tempo em busca de uma saída, (e se eu tentasse tirar uns nabos da púcara, do género: por que é que sente a necessidade de me pôr a questão?). A professora era daquelas que sentia que não podia dizer apenas: Não, não podes! Teste é teste!. Este episódio é significativo a vários títulos. O que hoje, porém, nos interessa assinalar é o que ele sintomatiza, enquanto expressão da complexidade da relação educativa no mundo escolar dos nossos dias. Por relação educativa, entende-se sempre uma relação mediada e orientada por um sentido que tem de ser reconhecido pelos parceiros da relação. Sem reconhecimento, isto é, sem partilha na legitimidade do sentido que se propõe ou que está implícito, não há relação educativa. Ora, como fazer reconhecer um sentido na multiplicidade actual das experiências, cada vez mais imprevisíveis, que povoam o quotidiano das escolas? O que o episódio referido acima testemunha, eloquentemente, é a perplexidade da professora perante a falta de sentido que aquela situação representa, enquanto integrada numa relação educativa. Como transformá-la de modo a que ela tenha sentido, eis a questão. A decisão implica um processo, quase instantâneo, onde estão presentes ingredientes de, pelo menos, três ordens de referências: 1- a interpretação da situação; 2- um quadro de valores que legitima a acção educativa; 3 - um esquema de relação interpessoal que estruture a comunicação da decisão, essencial à consistência prática do que for objecto de 1 e 2. Simplificando, estamos perante a famigerada tríade do pensar/julgar/fazer, a tal de que se têm ocupado milhões de páginas, desde Aristóteles, a Kant ou a Skinner, sem que delas possa valer-se o/a professor/a em cada instante da sua prática. Porque a grande diferença entre os milhões de páginas que pretendem ajudar-nos e a cena dos auscultadores à cabeça em dia de teste é que esta acontece, não está prevista, isto é, não devia (teoricamente) acontecer. E esse é também o drama da prática: manter-se dentro das margens do teoricamente esperado (a famosa norma) e temos a prática inerte ou a rotina; ou acolher o que acontece, transformando-o e transformando-se e temos o risco, a insegurança e a precaridade das certezas. No horizonte, a lição de O Clube dos Poetas Mortos. Será por isso que, nas escolas, não acontece nada? Ou o que acontece é clandestino? Então, e tu o que fizeste? perguntava o interlocutor à professora do aluno com os auscultadores à cabeça. Isso é muito complicado de explicar , respondeu. Terá de ficar para a próxima. (Dezembro/97)
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