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A reflexão participada sobre os currículos do ensino básico: uma discussão em aberto

Ariana Cosme

Rui Trindade

A implementação de um outro projecto de escolaridade básica, capaz de se afirmar como uma proposta politicamente democrática, socialmente empenhada, culturalmente relevante e educativamente significativa, constitui uma necessidade urgente deste país. Daí que o lançamento, por parte do Departamento de Educação Básica, de uma reflexão participada sobre os currículos do ensino básico deva ser encarada com a importância e a atenção que uma tal iniciativa indubitavelmente merece, independentemente das razões que lhe possam estar subjacentes ou das vicissitudes metodológicas que marcaram o processo de reflexão proposto por esse departamento do Ministério da Educação.

Partindo de um conjunto de pressupostos respeitáveis e pertinentes, nomeadamente no que concerne à necessidade de se articular a discussão sobre os currículos do Ensino Básico com a política global de autonomização e contextualização das práticas educativas nas escolas portuguesas, bem como com as mais recentes perspectivas teóricas acerca da gestão, organização e desenvolvimento curricular, o relatório não supera, contudo, as limitações da abordagem funcionalista adoptada pelos seus autores, a qual determina, em larga medida, o conteúdo das sínteses e da reflexão final produzidas. Assim, não é por acaso que o relatório se limita a constatações, nem sempre inéditas, acerca da relação estabelecida entre os professores e os currículos. Afirma-se, por exemplo, que a flexibilização curricular não constitui uma preocupação primeira dos professores, já que estes, porque não se vêem como decisores curriculares, remetem para as estruturas centrais do Ministério essa responsabilidade, do mesmo modo que confessam, igualmente, a sua impotência para resolver os problemas com as quais as escolas se debatem, reivindicando esse papel para outros profissionais e sem nunca equacionarem as suas próprias responsabilidades nesta matéria.

Tratando-se de um problema real e significativo com o qual se confronta o nosso ensino básico, e sem querer iludir esta questão, sempre diremos que estamos perante conclusões que parecem interessar à actual equipa ministerial, convicção que é reforçada pela singeleza das recomendações produzidas pelos autores para o desenvolvimento do processo em 1997/98, as quais se resumem basicamente a solicitar: (i) incentivos ao desenvolvimento de projectos de gestão curricular flexibilizada; (ii) a divulgação destes mesmos projectos e (iii) o aprofundamento da reflexão em torno desta temática. Convenhamos que a panaceia proposta para a resolução de um problema com tal magnitude pode ser comparada à tentativa de tapar a ruptura de um dique com uma rolha.

Todos reconhecemos que a principal tarefa com que hoje se defrontam as escolas do Ensino Básico se relaciona, sobretudo, com a construção de projectos educativos de natureza inclusiva, o que implica que se deva assumir a problemática da flexibilização curricular e da gestão diferenciada e contextualizada dos currículos como uma questão estratégica central na prossecussão de tais projectos. Neste sentido, as propostas apresentadas pelos autores dos projectos são manifestamente insuficientes para responder à complexidade do desafio que se nos coloca, quer porque este desafio está longe de ficar confinado a uma questão de natureza exclusivamente curricular quer porque a dimensão curricular do problema em análise implica que se deva abordar a responsabilidade de outras instâncias e de outros actores educativos.

Admitindo que estamos perante uma questão que exige um espaço específico de debate e reflexão, nem por isso pensamos que este mesmo debate e esta mesma reflexão se possam alhear de outras discussões a jusante, nomeadamente aquelas que dizem respeito à problemática do novo regime de gestão e autonomia das escolas, da questão relativa às novas habilitações para a docência, e da subsequente reestruturação dos grupos disciplinares, da avaliação de desempenho dos professores, das modalidades e dispositivos de apoio educativo ou dos projectos de formação contínua a implementar.

Por isso é que pensamos que o problema em análise é de tal forma complexo que muito dificilmente poderá ser abordado em função do conjunto avulso de medidas preconizados nas reflexões finais do Relatório em apreço. É que não estamos a enfrentar um problema de ordem meramente conjuntural, a ser resolvido por medidas que assentam exclusivamente na valorização da exemplaridade pedagógica de alguns nichos escolares, cujas experiências, embora mereçam e devam ser divulgadas, nunca terão um efeito massivamente reprodutor. Estamos, pelo contrário, perante uma questão que implica uma outra concepção de educação escolar básica, a qual deverá determinar configurações alternativas aos actuais projectos de formação inicial e contínua, congruentes afinal com a necessidade das nossas escolas se assumirem, cada vez mais, como espaços escolares inclusivos. Não chega por isso acenar aos professores com a retórica da flexibilização curricular e a necessidade de se contextualizarem as práticas educativas docentes para mudar o que quer que seja. Tratando-se de uma necessidade vital para uma escolaridade de massas que pretendemos democrática, socialmente significativa e culturalmente relevante, não se podem esperar milagres neste campo, sem medidas que estimulem uma outra atitude dos docentes como decisores curriculares, o que passa pela construção de uma outra cultura institucional nas escolas do Ensino Básico.

Deste modo os dados divulgados pelo Relatório não podem ser lidos em função de uma perspectiva iminentemente funcionalista, isto é, construída para responder mais às necessidades de legitimação da actual política educativa, do que propriamente para avaliar as tensões e as zonas de conflitualidade do nosso Sistema Educativo, em particular na área do Departamento de Educação Básica.

Em nossa opinião, os resultados da reflexão dos professores inquiridos não podem ser lidos de um modo tão imediatista como aquele que nos é proposto pelos autores do Relatório. Constata-se, de facto, um certo conservadorismo pedagógico dos docentes face à gestão dos currículos, mas torna-se necessário analisar os dados disponíveis para além do que nos parece ser evidente. Torna-se necessário problematizar esses mesmos dados, confrontá-los no âmbito de uma rede de significações mais vasta e explorar outros sentidos possíveis relativamente à reflexão produzida pelos professores. Em suma, importa abordar a questão do eventual conservadorismo curricular dos nossos professores em função de uma grelha de leitura não-conservadora.

É interessante notar que, segundo o Relatório, só os contributos dos CAEs se referem à problemática da flexibilização curricular como um princípio estruturante das práticas educativas dos docentes, enquanto são raras as escolas que o valorizam como tal. O que concluir ? As autoras afirmam que "os docentes e escolas parecem ver-se como reflexo e receptores de problemas exteriores e raramente como decisores com direito, poder ou reais possibilidades de mudar a situação" e nós consideramos que esta atitude dos professores, não sendo desejável, é legítima e congruente quer com a cultura centralizadora do Ministério da Educação, impeditiva da afirmação dos professores como decisores aos mais diversos níveis, quer com a ausência de uma estratégia capaz de implementar um outro projecto educativo para o Ensino Básico. Um projecto que tenha em conta a necessidade de um maior protagonismo docente na gestão dos currículos não é algo que se decrete, é algo que se constrói. E constrói-se, sabendo-se que o centro do sistema pode estimular, mas nunca decidir a autonomia das periferias.

A postura dos docentes torna-se, contudo, e ainda mais compreensível à medida que equacionamos o seu mal estar profissional; as condições de trabalho nas escolas e a complexificação dos desafios que se colocam neste âmbito; a relação tutelar que o Ministério e a sua máquina burocrática continuam a manter com os contextos escolares, a qual obsta, necessariamente, a que os docentes manifestem outro tipo de expectativas relativamente à sua capacidade como gestores curriculares; a ênfase em projectos de formação contínua organizados em função da divulgação de saberes previamente construídos, e da obtenção de créditos, mais do que em função da construção e do desenvolvimento da reflexão profissional dos docentes sobre as suas práticas educativas; a qualidade e a pertinência (ou a falta destas) dos percursos da formação inicial e, finalmente, a ausência, até à data, de um contributo mais significativo dos profissionais que integram os dispositivos de apoio educativo (Equipas de Apoio Educativo e Serviços de Psicologia e Orientação) na animação de projectos de intervenção multiprofissional aos mais diversos níveis.

Em conclusão, a não-valorização, por parte dos docentes inquiridos, do seu papel como gestores curriculares pode não expressar, apenas, a dificuldade sentida por estes em aceitar tal incumbência, mas revelar também, tanto a sua justificável desconfiança face às propostas do Ministério da Educação neste âmbito, como o próprio nível de grandeza do desafio proposto. Estamos, afinal, perante uma problemática que, mais do que ser abordada em função da adequabilidade do perfil dos professores para o Ensino Básico, deveria ser compreendida de um modo mais abrangente, como o resultado de um processo de transição entre uma escola básica marcada pelas contradições inerentes a uma cultura escolar ainda sujeita a uma lógica que favorece um tipo de sequencialidade regressiva (incapaz por isso de responder às necessidades, exigências e desafios da vida contemporânea) e uma escola básica de massas que se defina pela sua capacidade em lidar positiva e criativamente com a heterogeneidade sócio-cultural dos seus alunos, de forma a potenciar, antes de mais, o seu desenvolvimento pessoal e social.

Num tempo como aquele em que vivemos torna-se necessário, em nome do mais elementar rigor, compreender que a tarefa da transformação do nosso Ensino Básico sendo uma questão que diz respeito aos professores, é, ainda, uma questão que diz respeito aos decisores políticos. A principal lacuna do Relatório que temos vindo a analisar é precisamente a de iludir esta questão, o que é grave, não só pelo acto em si, mas devido sobretudo ao modo como pode limitar e distorcer a reflexão relativa às responsabilidades que cada um deverá assumir, nomeadamente a actual equipa ministerial, em áreas tão diversas como aquelas que se relacionam prioritariamente com:

a) a qualidade e a pertinência dos projectos de formação inicial de professores, o que exige que o Ministério assuma um papel regulador neste campo, desenvolvendo por isso dispositivos de monitorização e aferição desses mesmos projectos;

b) o desenvolvimento de projectos de formação contínua cada vez mais burocratizados e distantes das reais necessidades de formação dos professores e das escolas;

c) a lógica subjacente aos programas relacionados com a compensação, a supletividade e a inclusão educativas;

d) o sentido e a natureza das iniciativas que se têm vindo a desenvolver no âmbito da construção de parcerias entre os jardins-de-infância e as escolas dos diferentes ciclos que integram o Ensino Básico;

e) as condições necessárias para se estimular e promover um novo regime de gestão das escolas que conduza à sua progressiva autonomia, no quadro de um regime de transição que não poderá ser nem burocrático, nem uniforme.

Atribuam-se aos professores as responsabilidades que lhes cabem assumir no domínio da gestão quotidiana dos currículos, mas não como uma estratégia de desresponsabilização dos decisores políticos ou como um expediente de legitimação de algumas das medidas que o Ministério da Educação tem vindo ou pretende vir a promover. A questão é demasiado complexa e exigente para ser abordada de um modo tão circunscrito como aquele que nos é proposto pelo Relatório divulgado pelo Departamento de Educação Básica.


  
Ficha do Artigo
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Autoria:

Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto
Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto

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