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Democracia, Sindicalismo, Representatividade e Direito à Negociação

Editorial de Maio de 1997

Acabamos de chegar ao termo de uma fase da negociação do Estatuto da Carreira Docente (ECD). Talvez seja boa altura para pensar o modo como em Portugal se tem processado a negociação entre sindicatos e governo.

Não se trata de fazer um balanço dos resultados alcançados com esta acção, mas de olhar para o que está por trás destes processos de negociação.

A legislação sindical que suporta estas negociações, está datada. Não é uma criação recente, mas vem dos tempos mais ou menos conturbados, da vida política, pós-25 de Abril. Que necessita de uma profunda reformulação, parece não oferecer dúvidas.

A legislação sindical actual só pode interessar a quem, de facto, não esteja interessado em que as relações entre sindicatos e governo, sejam transparentes e democráticas. Não interessará também às pessoas que não representando os professores, mas sim grupos de interesse, vivem da complacência do Estado ou da importância interesseira que este lhes dá, e não da sua inserção no meio dos trabalhadores.

A fase de negociação do ECD que acabamos de ultrapassar, veio mostrar várias coisas. A primeira, é o caos reinante no processo negocial. O governo, por sua iniciativa, chama a negociar quase uma dezena de organizações. Uma parte destas organizações são desconhecidas dos professores e, só existem, porque constam da lista das "organizações sindicais" elaborada pelo Ministério da Educação. Nalguns casos, não se lhes conhece actividade sindical junto dos professores. Noutros casos, são organizações, que afirmando-se sindicais, na realidade, representam pequenos grupos de interesse - uns, relacionados com sectores de ensino, outros, derivados de preconceitos, mais ou menos elitistas, ligados ao diploma da formação inicial. (1)

O Ministério ao socorrer-se deste grupo de representantes de interesses vários e contraditórios, ficou a braços com uma tarefa quase impossível: obrigado a multiplicar-se por várias mesas de "negociação", confrontado com interesses, umas vezes gerais, outras particulares e de grupo, teve de prolongar no tempo o processo negocial e perdeu-se em tricas e nicas que pouco adiantaram a uma revisão séria e eficaz do documento em questão. O resultado está à vista. Foi preciso mais de um ano para clarificar um ou dois pontos do Estatuto, que de resto, pouco vão influir na mudança que a escola e a profissão precisam em Portugal.

Por seu lado os sindicatos que realmente o são e representam os professores, deixaram-se arrastar por este processo anárquico e, passaram mais de um ano, a bater com a cabeça nos arbustos, incapazes de ver a floresta.

Neste processo, ficou claro, que não temos em Portugal um verdadeiro processo de negociação. Temos sim, um processo rudimentar e desorganizado de auscultação e de conversa entre as partes.

Não está claro quem representa quem, que peso tem cada organização, nem que direitos de intervenção têm os sindicatos. Não está expresso, preto no branco, quais as matérias de negociação obrigatória, quais as de auscultação, quais os direitos e os deveres das partes, quem pode e deve apresentar propostas, quais as matérias que precisam de maioria, para serem validadas e transformadas em lei.

Por outro lado, a falta de clareza, a audição quase secreta das várias organizações e grupos, não permite aos professores saber verdadeiramente o que cada organização sindical defende à mesa das negociações, ou que opiniões manifesta face ao Ministério. Os professores, os mais interessados em saber, em conhecer e em influenciar o que dizem e fazem os dirigentes sindicais, são assim marginalizados de facto, nos processos de auscultação ou "negociação".

Repito que a legislação sindical, que tudo isto permite, não é de agora e que vem de um outro tempo em que partidos, governos e sindicatos pareciam estar relativamente de acordo com uma certa distribuição de papéis entre si.

A direita, por ideologia, sempre entendeu que os sindicatos não fazem falta. Para ela, a boa condução da coisa pública faz-se nos gabinetes e corredores do Poder, pelo entendimento entre o governo e o patronato. Para a direita, o governo e o patronato sabe melhor que ninguém o que é bom para o povo, para os trabalhadores e para o país. Não admira pois, que a direita procure minimizar o papel dos sindicatos e, se possível, até considerá-los obsoletos e contrários aos desígnios nacionais.

Mas também é verdade que, num certo momento da nossa história recente, alguma esquerda fez do sindicalismo um entendimento que, também por razões ideológicas, minimizou o papel dos sindicatos. Para esta esquerda, competiria ao Estado e ao partido decidir os melhores caminhos para os trabalhadores e para a nação. Para os sindicatos ficava o papel de explicar aos trabalhadores a boa actuação do Estado - se este estivesse sob comando do partido conveniente - ou a má actuação do Estado se comandado pelos inimigos do partido conveniente. Aos sindicatos caberia apenas o papel de apoio ao governo nas situações em que partido, governo e sindicatos fossem da mesma família política ou, de contestação e agitação social, nas situações em que partido e sindicatos se encontrassem na oposição.

Hoje ainda há alguns sindicalistas a assumir estes papéis.

Contudo, nas sociedades democráticas, o papel dos sindicatos não pode ser apenas o de aplaudir ou assobiar os actos do governo. Não podemos escolher apenas entre duas atitudes, uma, que consiste em sentar-se e comer educadamente à mesa do Poder - como o faz uma certa corrente sindical - e outra, que tem como objectivo único, esperar o momento de puxar a toalha e espalhar as iguarias no chão. Não se trata de escolher entre um sindicalismo que partilha o poder do Estado e um sindicalismo que se limita a fazer arruaças de rua.

Para bem dos trabalhadores e da sociedade, o papel do sindicalismo, nas sociedades democráticas, é muito mais importante. Os sindicatos são parceiros sociais com tudo o que isso significa de antagonismo e de crítica, mas também, de capacidade de apresentação de propostas e de procura de consensos que favoreçam a classe mais numerosa da sociedade que são os trabalhadores e, por arrastamento, a sociedade em geral.

É pois imperioso que se produza nova legislação sindical que altere radicalmente o actual estado das relações entre sindicatos e Ministério da Educação. É necessário que a nova legislação contribua para clarificar quem representa quem. Qual o peso das organizações sindicais, qual a sua real representatividade. Quais as obrigações do governo. De que modo os professores podem conhecer melhor o que se negoceia no Ministérios e como podem manter um maior controlo sobre os dirigentes sindicais que os representam.

É necessário que a nova legislação clarifique o âmbito de intervenção dos sindicatos e torne claro as questões sobre as quais deve haver autêntica negociação e aquelas em que se exige auscultação. No caso da educação, que não tem apenas os professores por parceiros, é fundamental que sobre cada matéria a negociar se clarifique quem são os parceiros que intervêm no processo de negociação, em que proporções, e com que direitos e obrigações. É necessário encontrar uma forma que permita que os professores tenham nas mesas de negociação representantes reais e não virtuais e que possam controlar e influenciar a participação destes.

Pela importância que os professores têm nos processos de mudança da escola é de interesse de todos que o ministério se entenda, nas questões fundamentais, com aqueles que realmente representam os professores, e não, com os representantes de pequenos lobies ou de pequenos grupos de interesse. O entendimento com estes, por não ter reflexos nos professores e escolas, de nada serve às mudanças que se querem introduzir na escola ou na profissão.

Sem receios, é necessário introduzir, com brevidade, formas democráticas de medição da representatividade sindical, e de auscultação da vontade dos professores. Esta medição só pode passar pela introdução de eleições sindicais.

Os sindicatos que queiram representar os professores nas mesas de negociação, devem submeter-se periodicamente ao sufrágio directo e secreto do conjunto dos professores, independentemente do número de associados que possuam. O número de associados que cada organização diz possuir é uma questão interna de cada organização sindical e não pode ser a via de medição da representatividade para efeito da constituição das mesas de negociação.

A medição da representatividade deve ser obtida pelo voto livre, do conjunto da classe, mediante processo eleitoral. A constituição das mesas de negociação deve resultar da proporção de votos obtidos pelas organizações sindicais nas urnas de voto.

Este processo de medição democrática da representatividade, tem ainda a vantagem de permitir uma melhor participação de todos os professores nas questões que lhes dizem directamente respeito. Votam em função de programas e de propostas e de objectivos apresentados. Votam em função do conhecimento que têm das práticas sindicais de cada uma das organizações. Votam em quem sabem que melhor defende os seus interesses e formas de pensar.

A constituição de mesas de negociação com base na proporção do voto livre dos professores, é uma forma de garantir que estes serão informados e auscultados, nos processos de negociação. É também um meio de levar os sindicatos a manter uma relação mais estreita com os professores. É ainda um meio de o Ministério saber que está a negociar com quem de facto representa o sentir mais geral dos professores e que essa força tem de ser respeitada.

Naturalmente que esta inovação tem de garantir aos sindicatos representativos dos professores mais amplos direitos sindicais e um alargamento do seu campo de intervenção, de negociação e de auscultação. Os sindicatos têm de ser verdadeiros parceiros sociais, de ser tratados como tais, e não meros parceiros de ocasião chamados a opinar sobre esta ou aquela questão, apenas quando interessa ao ministério.

A fase de "negociação" que agora terminou mostrou que a actual legislação sindical está esgotada e precisa de uma completa mudança. Mostrou que não é capaz de contribuir para introduzir mudanças, quer na profissão docente, quer na escola. Mostrou que não serve um campo social que tem de ser ágil na mudança e ágil na capacidade de se adaptar a novas situações e desafios. Mostrou que a generalidade dos professores estiveram sempre distantes e indefesos, perante o que se estava a passar. Mostrou que apesar do esforço de alguns sindicatos, estes, perante a anarquia negocial, só à custa de um enorme esforço, desgaste e investimento, conseguiram manter parte dos professores razoavelmente informados do essencial do processo.

Esperemos que o Ministério, os sindicatos e as federações sindicais mais influentes, compreendam a necessidade de alterar com urgência a legislação vigente e se entendam, sem medos, para que ela tenha tradução prática rapidamente.

Os professores, o sindicalismo e o mundo da educação devem ter a coragem de andar sempre um passo adiante. Esperamos que também nesta matéria saibam ser um exemplo a seguir.

(1) Está por provar que a formação inicial, só por si, produza melhores e mais qualificados profissionais. Quem conheça as escolas e o mundo dos professores, sabe que a formação inicial - como de resto ocorre noutras profissões - é apenas um ponto de partida para a aprendizagem da profissão e, que a qualidade do desempenho profissional, é diversificada entre os que possuem a mesma formação inicial. Sejamos mais claros, temos excelentes professores que possuem como formação inicial a licenciatura, obtida nas velhas universidades e, temos péssimos professores com o mesmo grau académico, obtido nas mesmas universidades. Temos excelentes professores que, na sua formação inicial, se sentaram no banco ao lado de outros que hoje são péssimos professores. O que qualifica e prestigia os professores tem pouco a ver com o diploma inicial que obtiveram e tem muito mais a ver com o uso que fizeram dos conhecimentos inicialmente adquiridos, e com a sua postura ética e profissional, ao longo da carreira, face aos desafios da profissão. A existência de lobies constituídos a partir do grau académico inicial, ou posteriormente adquirido, ou mesmo em função da academia que lhes conferiu o diploma, são hoje factos banais. O que não é normal é que o Ministério da Educação os qualifique e os acolha como representantes sindicais do conjunto dos professores.

José Paulo Serralheiro


  
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Autoria:

José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.
José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.

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