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Lembrança de Pablo NERUDA

De repente, o nome de Neruda, que parecia estar esquecido, volta a ocupar as primeiras páginas dos jornais, sobretudo entre nós, onde a sua obra poética continua a ser conhecida apenas de um reduzido círculo de leitores. Mas o êxito obtido com o filme O Carteiro e a edição portuguesa do livro que esteve na sua origem trouxeram, com toda a razão, a presença do Poeta de Canto General para o lugar que por direito bem merece. E, a par desse sucesso, apareceu também recentemente em português, numa tradução de Albano Martins e em edição "Campo das Letras", Os Versos do Capitão, em que uma vez mais se observa a pujança expressiva, o rigor e a força da palavra poética de Neruda. Na relembrança de Pablo Neruda ter sido galardoado com o Prémio Nobel de Literatura, em 1971, aqui publico o texto de saudação que lhe dediquei nessa altura, escrito no Porto, à mesa da "Brasileira", na forma de o ter felicitado deste modo nas páginas do jornal República (Outubro de 1971):

Pois é, alguma vez tinha de ser - e foi neste ano de graças de 1971. Tanto tempo à espera, Pablo, alguma vez havias de ser premiado. E por isso daqui te saúdo muito cordialmente. Se o Nobel imortaliza as instituições, se o Nobel dá fama a quem já a tem, é verdade que ninguém duvida mereceres há muito o Nobel de literatura e sei que não irás recusar esses milhares de coroas suecas que chegam e sobram para construíres outra "casa na praia". Não sejas tolo ou generoso, Pablo! Se as coroas têm grande cotação no mercado, é evidente que com o Nobel os teus livros ganharão agora mais leitores. E assim se quebrará essa muralha de silêncio feita sobre o teu Canto General em muitas partes do Mundo. Sim, Pablo, não tenhas ilusões: pelo menos, por aqui, nestas paragens marítimas, neste extremo da velha Europa que te consagra em definitivo assim aos quatro ventos, és ainda pouco conhecido e até mal traduzido. Mas, se o Nobel distingue a tua obra poética como a de uma das vozes da América Latina que mais tem lutado para se fazer escutar, também é certo que o teu amigo Salvador Allende esfregará nesta hora as mãos de contente pela sorte que se coloca ao lado dos chilenos.

Mas não te iludas, Pablo, porque a vida não está para cantigas e os ventos trazem consigo talvez sinais de outras maiores e derradeiras desgraças pela imagem simbólica de "Medusa" ou da tua "Cymbelina" que cruza outros mares. Pensa, pois, nas coroas suecas que vais receber e noutra "casa na praia" - essa bela casa de que soubeste falar e na qual Régis Débray descansou depois de o terem libertado dos cativeiros da Bolívia. Claro, duas casas não revelam excessivos sinais de riqueza e outro Débray poderá surgir no horizonte. Nunca se sabe!

E como será desvanecedor, Pablo, estar agora na tua pele. Não pelo prémio, nem pela conquista da imortalidade que bem mereces. Não, nada disso. Apenas por causa das coroas suecas que, mesmo cambiadas em escudos correntes, sabes, daria para edificar aqui outra grande e bela casa na praia, que é um sonho dos pobres e tristes desta terra em que vivo e de onde te saúdo em instante de tanto júbilo. E deixemo-nos de coisas, Pablo: só desejava realmente as coroas suecas que receberás das mãos do rei Gustavo Adolfo! Vê lá, nem sequer sou muito ambicioso, Pablo. Muito mais vais tu receber - tu que já tens tudo e até tens, é verdade, essa excelente "casa na praia", onde em momentos de crise ou de aflição te refugias com mantimentos, vinho tinto e alguns romances policiais.

Mas, sem falsa modéstia, diz-me cá uma coisa: que vais fazer com esses milhares de coroas suecas trocadas em dólares? Poderemos ainda esperar outros livros? Não, não faças isso, Pablo. Trabalhaste de mais e mereces bem viver tranquilo na tua para sempre lembrada Ilha Negra, entre os objectos de que mais gostas e na sombra tutelar dos poetas que evocaste e inscreveste numa das traves do teu veleiro pelas mãos hábeis de Rafita, esse poeta- carpinteiro. Já cumpriste a tua obrigação, Pablo! Escuta agora o rumor incessante e calmo do mar tão perto de tua casa. Mais nada, claro, mais nada.

E, não sabendo ainda o que dirás deste Nobel (que, afinal, caiu como sopa no mel da tua alegria, suponho), mas sabendo pelas notícias das agências que este prémio te pertence por direito próprio, daqui te abraço e me congratulo por seres assim consagrado e enaltecido. Pelo teu Canto General e nos limites mais humanos dessa condição de Poeta, na voz pessoalíssima que sempre ressoa por este mundo quase virado do avesso e no teu continente em sobressalto, o Nobel assenta como uma luva, Pablo, arvora-se como tributo à força gritante da tua poética em combate violento e penoso de tantos anos.

E por isso deste recanto ibérico te saúdo e revejo agora esta velha fotografia, no Palácio do Livro do Rio de Janeiro, no Brasil, no momento em que abraçavas o meu amigo Luiz Veiga Leitão, todo ele sorridente e poeta desempregado, longe da minha cidade de infância. E, finalmente, assim te evoco, Pablo, de muito longe, por esta cidade à beira do Douro que, como proclamava Garrett, "È terra bem pequena e a gente dela não é grande". Mas foi daqui que houve nome de Portugal, sabes, e desta cidade toda vestida de pedra, como Veiga Leitão a soube cantar, cordialmente te digo e repito que não deves recusar as coroas suecas. Por fim, relendo e traduzindo este belíssimo livro que é Uma Casa na Praia, revisitada a tua mansão nas fotografias de Sergio Larain, te saúdo hasta siempre, Pablo, no prazer e na humildade de ter posto em português um dos teus melhores e mais expressivos textos poéticos.

Porém, dois anos depois deste texto em forma de carta, que então publiquei e sei que nunca chegou ao seu destino, na homenagem que ainda te é devida, Pablo, lamento ter de escrever agora estas poucas linhas de tristeza e de raiva bem dorida e sincera. Por pouco tempo gozaste, Pablo, a fortuna ou a sorte do Nobel recebido em hora de grande alegria. Em manhã negra e agoirenta de Setembro de 1973 muito chuvoso, o Chile viveu e sofreu o calvário dos dias de dor e morte, que estavam à espera para abalar o teu País de um a outro extremo. Lembro ainda como Allende morreu às mãos traiçoeiras das tropas de Pinochet, o rei Gustavo morreria pouco tempo depois, os teus amigos souberam como esse calvário se aproximara do fim no assalto, destruição e morte da tua casa na recordada Ilha Negra.

E assim o Chile viveu e morreu em intervalo de breves e dolorosos dias. A tua morte chegou nos tiros e desmandos da repressão militar que se abateu sobre Santiago em vagas tumultuosas de perseguições, prisões e muitas mortes provocadas pelo ódio sanguinário e demente de uns tantos filhos da puta que sempre aparecem no caminho dos poetas, acabaram por encher de raiva os campos de futebol entre muitas palavras de protesto, dor e sofrimento de tanta gente. E também tu acabaste por sucumbir de coração esfrangalhado, a tua casa na praia foi saqueada, destruída e incendiada, na lembrança do canto e das palavras de Victor Jara que a morte não tinha podido calar, mas calou um pouco mais tarde. E, numa campa rasa, algures num cemitério do Chile, o teu corpo para sempre ficou envolto em silêncio, no luto e na saudade que se espalhou por todo o Mundo, ainda na memória guardada em favor de Allende, teu amigo na vida e na morte. E por isso te digo e repito, Pablo, hasta siempre, compañero!

Serafim Ferreira


  
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Autoria:

Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.
Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.

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