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José Marmelo e Silva o sentido redescoberto de Eros

JOSÉ Marmelo e Silva (Paul, 1913-Espinho, 1991) frequentou o Seminário do Fundão e licenciou-se em Filologia Clássica na Universidade de Lisboa, após ter frequentado a Faculdade de Letras de Coimbra. Dedicou-se desde sempre à carreira do ensino secundário e liceal, em várias escolas e liceus do País, embora com grande permanência num colégio particular de Espinho, onde viveu mais de quarenta anos até à sua morte.

Ligado à corrente literária neo-realista que despontou em Coimbra nos anos 30 e 40, a sua obra marca a transição entre o movimento "presencista" e os valores ideológicos e estéticos do neo-realismo. Mas nas suas novelas, romances e contos perpassa, com corajoso desassombro e desenvoltura, a temática da sexualidade, ao mesmo tempo que nunca deixou de evidenciar uma preferência por temas ligados a ambientes fechados e opressivos (como a vida de seminário ou de quartel), intimamente relacionados com as suas experiências pessoais. Toda a sua obra literária, escassa em número de títulos publicados em mais de cinquenta anos, mereceu desde o começo a aceitação e compreensão unânime da crítica e, na opinião de Mário Sacramento, revela-se, sem dúvida, como "um dos casos mais notáveis da literatura portuguesa e aquele que mais fundo exprime e ensaia o significado da arte como libertação e reintegração do homem".

Mas, se existem entre nós escritores que nunca utilizaram a chamada "estratégia da glória", podemos dizer que o autor de Sedução pertenceu realmente a esse escasso número de verdadeiros escritores. Mesmo com uma obra bastante reduzida (seis livros publicados e reeditados em mais de cinquenta anos), mas significativa quanto à sua qualidade criadora, toda a ficção de Marmelo e Silva se afirma como a realização de um escritor que nunca teve pressa, esperou que o tempo confirmasse a importância literária dos seus livros, os leitores deles se aproximassem e soubessem entender o sentido profundo e autêntico da obra que pôde realizar. O que nem sempre acontecera, talvez porque a publicação das suas obras se pautou por longos intervalos e quase se confirmou, afinal, no espaço dos primeiros dez anos: Sedução (1937), O Sonho e a Aventura (1943), Adolescente Agrilhoado (1948). Depois, deu-se um demorado silêncio, preenchido só com algumas reedições refundidas, sobretudo de Adolescente, para romper finalmente esse silêncio com O Ser e o Ter seguido de Anquilose (1968). Mas ocorreu ainda novo e alongado período sem novos livros e apenas em 1984 é que aparece o romance Desnudez Uivante, em que Marmelo e Silva retoma os valores essenciais da ficção inicial das páginas de Sedução ou de O Sonho e a Aventura. No fundo, cinquenta anos para editar, refundir e reeditar cinco ou seis livros que, por diteiro próprio, o colocaram na primeira linha dos prosadores portugueses do nosso tempo.

Partindo com a corrente neo-realista, repetimos, mas antecipando-se-lhe numa perspectiva humanista do fenómeno literário mais adequada aos valores da época (Sedução é um romance que se situa muito perto de alguns escritores da "Presença" mais do que da primeira vaga neo-realista que se seguiu), José Marmelo e Silva não deixou nunca de se identificar com esse movimento que, apesar de certas limitações estéticas e literárias, produziu obras de verdadeira desmistificação social num tempo que foi excessivamente nebuloso e de quase colectivo pânico cultural.

No entanto, o autor de O Ser e o Ter procurou situar-se para lá dos valores ideológicos do neo- realismo, quis ultrapassar as barreiras de um esquematismo demasiado evidente (e até hoje ainda e sempre tão discutido), desdobrando a criação literária em dois sentidos ou opções aparentemente diversas: por um lado, a fidelidade ou o arreigamento a um mundo real, objectivado em claras razões e desigualdades sociais, visão lírica, sentimental e poética de um mundo a que não deixou de ser fiel: "Narrativa Bárbara, “Ladrão” “O Conto de João Baião” e esse amargurado, lúcido e polémico testemunho que é Adolescente Agrilhoado, colocando a nu toda a verdade e realismo de um ambiente fechado e alienado (que tem paralelo em idêntico grito de revolta, na nossa moderna literatura, com Manhã Submersa, de Vergílio Ferreira); por outro lado, a libertação plena de uma imaginação rica de experiências, sinuosa nos labirintos em que penetra, descobrindo, aqui e ali, a exacta medida do que nos compromete, tendo sempre em conta uma nítida intenção social e histórica a que a arte de escrever de Marmelo e Silva confere uma dimensão e rigor literário bem definido e expressivo. E é desse modo que se pode e deve entender Sedução e também essa novela de excepcional recorte literário e social que é "Depoimento", incluída em O Sonho e a Aventura, que entronca directamente na longa e belíssima novela Anquilose, sem desobedecer ou deixar de lado a "estrutura" ficionista da sua primeira versão de 1968.

Obedecendo ainda a esse núcleo problemático que Mário Sacramento designou, com justeza e razão, como insurreição dos mitos, Anquilose abre para uma outra atitude de escritor, mais disponível e descomprometido, esquecendo qualquer forma de esquematismo literário ou de fidelidade a "cânones" impostos e assim se revela como um dos melhores textos de um escritor de quem é muito difícil escolher o que mais nos entusiasma, comove e agrada. Experiência vivida, meditada, pensada, revivida e depois contada em termos de ficção literária, Anquilose evoca ainda certos aspectos de um mundo fechado ou alienador, denunciando situações que tendem sempre para uma aventura dividida entre as suas diversas personagens femininas, talvez como indício de existir um primeiro amor que tudo macula e determina.

Mas o sentido irónico que tantas vezes se descobre nos "quadros" dessa novela manifesta também outra das qualidades do estilo e da linguagem de Marmelo e Silva, sem que tal sirva para destruir a verdadeira intenção em que se desdobra a própria história. E nem as alterações, posteriormente introduzidas na estrutura global do texto, mutilaram ou diminuíram a força e sentido profundamente humanizado da "história" que se narra. Porque a carga expressiva da sua linguagem crítica, surpreendente e firme, a beleza de um estilo inconfundível, a sensibilidade com que sabe esboçar e retratar figuras femininas e abordar os seus conflitos amorosos, superiormente localizados por entre um denunciador contexto histórico e social, tudo isso faz parte do universo ficcionista deste criador de obras-primas da nossa moderna literatura, sem que o reconhecimento da sua obra até hoje se tenha dado plenamente junto dos leitores.

Porém, desde Sedução a Anquilose, de Depoimento a Desnudez Uivante, o que se impõe nas linhas de força da ficção de José Marmelo e Silva é claramente esse sentido redescoberto de Eros, mesmo no clima poético, sonhador e utópico como singulariza as personagens e temas da sua peculiar obra literária, certo de que, como lembrava Marcuse, "hoje a luta pela vida, a luta por Eros é (ainda) uma forma de luta política". E assim a intenção da problemática humana e social posta em questão, abordada e denunciada no conjunto da sua ficção, apela sobretudo para esse propósito de desalienação total de preconceitos que impedem a absoluta plenitude do homem, o asfixiam nos condionalismos do seu renovado desejo e vontade de libertação.

Por tudo isso, neste ano de 1997 em que passam 60 anos sobre a publicação de Sedução, a obra de Marmelo e Silva ainda se impõe a nossos olhos como um dos importantes pilares da ficção contemporânea portuguesa e continua a exigir por parte da crítica e dos leitores a atenção e o interesse que sobejamente merece. Ontem e ainda hoje, claro.

Serafim Ferreira


  
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Autoria:

Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.
Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.

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